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Marechal

O preço da ressocialização

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Mirely Weirich/OP
Em meio à expectativa da formalização de parceria entre o Poder Público e o Judiciário de Marechal Rondon para a prestação de serviço comunitário ao município por parte dos apenados para reinseri-los na sociedade, condenados continuam vivendo à sombra do preconceito

Nos dicionários, o preconceito é descrito como uma atitude genérica de discriminação ou rejeição de pessoas, grupos ou ideias, entretanto, explicar o conceito na teoria é muito mais simples e menos doloroso do que viver essa descrição na prática. Neusa* que o diga.

Há três anos, todos os dias, a partir das 08h30, ela vai até um colégio rondonense cumprir com suas obrigações de zeladora. Ela é uma das cerca de 400 pessoas da Comarca de Marechal Cândido Rondon que prestam serviços comunitários como forma de pagar por um crime que cometeu e se reinserir na sociedade.

Apesar de não se envergonhar ou ter displicência ao executar o trabalho para o qual foi designada, quando começou a cumprir suas horas, um dos primeiros sentimentos que a acompanhou foi a tristeza pela rejeição e o preconceito com que a sociedade trata os apenados. Não só eu, mas outras pessoas que também prestam serviço passam por isso. Às vezes a pessoa não precisa falar nada, mas a maneira como ela te olha já diz tudo, expressa.

Por estar há tanto tempo pagando suas horas, Neusa diz que já não sente mais o impacto do preconceito tão fortemente como no início, especialmente porque boa parte dos funcionários que a tratavam de maneira diferente não trabalham mais na instituição. Hoje todas as zeladoras são legais comigo, me respeitam e eu respeito elas, de igual para igual. Mas antes, chegavam a me mandar limpar quatro salas de aula sozinha, relembra. Na época, Neusa estava grávida de três meses. A pessoa nem pergunta o que você fez, porque você fez, ela só julga. Ela só te olha de um jeito, faz algum gesto ou deixa de cumprimentar e você já sabe que ela não quer você por perto, completa.

 

DESCONFORTO

A presença de apenados em instituições públicas de ensino não é novidade em Marechal Rondon, porém, recentemente a presença desses cidadãos nos colégios tem trazido desconforto à comunidade escolar, que se sente amedrontada e intimidada por estar convivendo e fiscalizando o cumprimento de uma sentença judicial de apenados. O tema chegou inclusive ao Legislativo, onde um vereador encaminhou pedido ao Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) solicitando que os serviços comunitários passem a ser prestados junto ao Poder Público municipal.

 

RECLAMAÇÕES

De acordo com o juiz da Vara Criminal, Clairton Spinassi, foram registradas reclamações na Justiça rondonense por parte de algumas instituições de ensino, entretanto, foram casos isolados. Foram bem específicos, onde o cidadão não foi cumprir o horário ou desobedeceu, e, sim, os funcionários sentiram-se constrangidos em cobrar aquele serviço, diz.

O magistrado conta que o interesse de que os apenados saiam das instituições de ensino e passem a cumprir suas horas junto ao Poder Público existe há algum tempo, contudo, há impasses quanto à fiscalização do trabalho dos condenados. Nós precisaríamos contratar uma pessoa que tivesse ascendência sobre esses presos, como um policial aposentado, por exemplo, e pagar todos os seus encargos. Contudo, não temos verba para pagar um salário de aproximadamente R$ 3 mil mais encargos que variam de R$ 4 a R$ 5 mil. Esse dinheiro é recolhido em um fundo e quando nós precisamos no projeto nós pedimos, sempre há verba, mas não é um recolhimento fixo, explica.

Frente a isso, a intenção do Poder Judiciário era de firmar uma parceria com a administração municipal para que a prefeitura arcasse com o pagamento deste profissional, enquanto a Justiça colocaria todos os condenados que prestam serviço à comunidade ou pagam multa à disposição do Poder Público.

Para Spinassi, uma boa destinação para esta mão de obra seria a manutenção de praças públicas, como a Willy Barth, que demandam de melhorias constantemente. Essas pessoas cumprem oito horas por semana, e temos mais de 400 apenados na comarca, então esse funcionário cuidaria dessa escala de trabalho deles, fiscalizaria o trabalho, se está sendo executado corretamente, e também a frequência das horas, a presença nos dias determinados, comenta.

Hoje, destaca o magistrado, a Justiça depende do controle dos apenados por parte de professores, que o fazem como um favor, mas não com todo o empenho que um cidadão designado o faria. A obrigação do professor não é cuidar do apenado, mas ele faz. E quando ele não o faz, eu tenho que intimá-lo, sob pena de processá-lo, pontua Spinassi.

 

OUTRO LADO

O Poder Público de Marechal Cândido Rondon já sinalizou positivamente para que os apenados passem a cumprir os serviços comunitários junto à administração municipal, no entanto, a ideia é de que todos sejam destinados a trabalhar junto à Secretaria de Segurança e Trânsito, e que sejam fiscalizados pela equipe da pasta. Temos interesse total nessa parceria porque temos vários locais para alocar essas pessoas em serviços como pintura de ruas e troca de sinalização defeituosa, por exemplo. Seria uma mão de obra bem aproveitada dentro da carga horária determinada, com equipamentos de proteção individual que nós colocaremos à disposição deles, menciona o secretário de Segurança e Trânsito, Welyngton Alves da Rosa.

Segundo ele, para que a parceria se concretize, será necessária uma formalização por parte do prefeito informando que o município solicita essa parceria com o Poder Judiciário. A partir do momento em que eles nos apresentarem essas pessoas, eles serão alocados em serviços de pintura de faixas, meio-fio, troca de sinalização, limpeza de jardins, praças e ruas, trabalhos que os nossos funcionários fazem todos os dias, porque nós não colocaremos ninguém em trabalhos forçados, adianta.

A fiscalização será feita pela equipe da secretaria, que em sua maioria é composta por ex-policiais. Nós temos que dar uma chance para os apenados de cumprirem a pena imposta para que mostrem que querem viver em uma sociedade justa, ressalta Rosa.

Na visão do secretário, nas escolas, o trabalho dos condenados pode não estar sendo muito bem utilizado, tendo em vista que os professores têm outro tipo de função específica: ensinar os alunos. Junto à Secretaria de Segurança e Trânsito o apenado será melhor fiscalizado, porque o professor tem como função prioritária ensinar os nossos alunos e não cuidar dos condenados, opina.

De acordo com Rosa, a iniciativa dá aos apenados uma chance de mostrar que eles querem voltar para a sociedade, já que quando não há esse tipo de iniciativa, há dificuldades em fiscalizar o serviço e do condenado cumprir sua carga horária. Com essa iniciativa vamos tentar permitir que o condenado sinta-se bem, que cumpra sua carga horária trabalhando em prol do município, enaltece.

 

OPORTUNIDADE

É direito de todos os cidadãos, ainda que tenham cometido algum delito, serem tratados com dignidade e respeito, e nesse contexto cresce a importância da adoção de políticas que promovam a recuperação do apenado no convívio social. Contudo, Spinassi avalia que pelo sistema que existe no Brasil hoje, o índice de ressocialização é muito pequeno. Eu diria que não chega a 20%, expõe.

O magistrado explica que apesar de a finalidade da pena ser castigar, ressocializar e servir de exemplo para que outras pessoas não cometam crimes, há o excesso de vantagens e benefícios concedidos àqueles que cometem delitos. O cidadão acha que é bom arriscar porque não vai ser preso, e se for, não vai cumprir, porque quando não cumpre o juiz ainda vai dar a chance para ele se justificar, destaca. Beccaria escreveu por volta de 1750 que não é a pena grave que faz com que você cometa crime – e nem hoje, porque naquele tempo era pena de morte, e se a pena de morte intimidasse nos Estados Unidos não teria crime -; o que faz com que a pessoa não cometa crime é a certeza de que ele vai cumprir a pena. No Brasil o réu tem a certeza de que não vai cumprir pena, porque é tanto benefício que ele não vai cumprir, acrescenta o juiz.

 

ARREPENDIMENTO

Antes de entrar no regime aberto, Neusa ficou presa por três meses. Ela acredita que ter pago sua pena por meio do serviço comunitário foi essencial para que reavaliasse suas ações no passado. Eu me arrependo muito do que eu fiz. Acho que o preconceito que estou sofrendo agora é fruto do que eu plantei lá trás. Se eu não tivesse plantado algo ruim, hoje eu não estaria colhendo alguma coisa ruim, foi o que o preconceito me fez entender. Não está certo, mas isso, de certa forma, me ajudou, declara.

Para ela, o sistema de regime aberto tem melhores resultados para a ressocialização de criminosos do que o regime fechado. É melhor trabalhar obrigatoriamente aqui do que estar dentro de uma cadeia. Se você cai lá dentro por roubo, você sai um assaltante de banco. Lá dentro a pessoa só planeja o mal. Pensa em você estar preso dentro de um quadradinho com mais um monte de gente naquelas condições. Ao invés de construir presídio, deveriam era dar trabalho para esses presos, sugere.

Hoje, Neusa sente-se feliz por ter criado um vínculo de amizade com as zeladoras da instituição que passam o dia trabalhando com ela, especialmente por terem a tratado como um ser humano como qualquer outro. Eu já ouvi o comentário de uma moça que foi pagar hora em um outro lugar e que preferiu pagar presa, porque na sociedade não aceitavam ela. Elas me falavam que eu não conseguiria prestar serviço comunitário porque é difícil enfrentar essas situações, e realmente é, mas eu sempre tive apoio do meu esposo, que esteve ao meu lado me dando forças para encarar essas situações. Hoje se alguém me olha torto, eu pego a vassoura e vou varrer o pátio, conta. Foi algo que eu fiz, estou pagando e graças a Deus já estou terminando. As pessoas têm que aprender a conviver novamente, aceitar que ninguém é perfeito. A nossa sociedade é muito preconceituosa, não só com os condenados, é com negros, é com pobres, deficientes, não interessa, o preconceito está aí, conclui.

 

*O nome foi alterado para preservar a identidade da fonte.


REGIME ABERTO

Na Comarca de Marechal Cândido Rondon não há um perfil específico de pessoas que cumprem o regime aberto. São homens, mulheres, réus primários ou reincidentes em diversos crimes, como furto, roubo e tráfico de entorpecentes. São diversos crimes, porque mesmo aquele que inicia no regime fechado, cumprindo determinado tempo da pena, ele chega ao regime aberto, mas para aqueles que já estão no regime aberto e descumprem a pena, é preciso justificar. Caso não justifique a pena vai regredindo, explica Spinassi.

Apesar de a regra constitucional determinar que a prisão seja uma exceção e aconteça somente em último caso, o sistema processual penal funciona com três regimes: aberto, semiaberto e fechado.

No regime fechado, o réu primário (que nunca teve condenação), se é condenado a mais de oito anos, começa a pena em regime fechado e quando cumpre um sexto da pena passa para o semiaberto. Já o cidadão que foi condenado de quatro anos e um dia até oito anos vai direto para o semiaberto, e cumprindo um sexto da pena vai para o regime aberto. Já o condenado até quatro anos vai direto para o regime aberto, ou seja, ele nunca vai preso, e esses geralmente são crimes de furto, receptação, morte no trânsito, embriaguez ao volante e estelionato, que, apesar de ser até cinco anos, existe a orientação para ser aplicada a pena próxima do mínimo, então se aplica para estelionato um ou dois anos, revela o magistrado.

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