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Elio Migliorança

Deus negro

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A evolução cultural nas últimas décadas e o advento das comunicações instantâneas através das redes sociais deveriam ter sepultado para sempre a discriminação das pessoas por causa da cor da pele. O que temos visto recentemente pelo mundo é o contrário.

A cada dia somos surpreendidos com novas e cruéis manifestações de racismo, perseguição e exclusão de pessoas por causa de raça e da cor. Isso tem provocado muitas indagações sobre a seguinte questão: estamos evoluindo ou estamos voltando ao primitivismo selvagem?

Cada cena de violência, seja das autoridades ou de cidadãos comuns contra nossos irmãos negros, causa revolta e um clamor por justiça.

Estes fatos recentes, que devem merecer nosso total repúdio, fizeram-me recordar de um poema do escritor Neimar de Barros, falecido em 2012, o qual, na década de 1970, publicou entre outros um poema com o título deste artigo: Deus negro. Tanto este quanto outros poemas do mesmo autor motivaram então a reflexão sobre a forma como vivemos e como nos relacionamos com as demais pessoas.

Foi um poema chocante porque abordava com muita profundidade a questão do racismo, fortemente praticado mundo afora na época e que agora parece ter renascido com igual intensidade como há 40 anos. É bom registrar que na década de 1970 ainda soavam fortes as palavras de clamor por igualdade dos direitos civis nos Estados Unidos, liderados pelo inesquecível Martin Luther King, um mártir da luta antirracismo.

No poema o autor se imagina morrendo e chegando na eternidade. No caminho vai encontrando os deficientes, os pobres, os doentes, os marginalizados, os abortados, os profissionais que exercem funções mais humildes e que por isso são desprezados, os menores abandonados, as vítimas do descaso e da corrupção.

A cada encontro um lamento de arrependimento pelo que não havia feito neste mundo. E no final do corredor, a maior de todas as decepções: a descoberta de que Deus é negro. Deus tem cor? De que forma ele vai se apresentar quando chegarmos lá?

E para que possamos meditar e principalmente avaliar nossa postura diante das pessoas e dos acontecimentos, transcrevo aqui a parte final daquele poema marcante de Neimar de Barros, cuja verdade só conheceremos naquele dia do encontro definitivo com Deus.

“Deus não está vestido de ouro. Mas como? Está num simples trono. Simples como não fui, humilde como não sou. Deus decepção. Deus na cor que eu não queria. Deus cara a cara, face a face, sem aquela imponente classe. Deus simples. Deus negro! Deus negro? E eu… racista, egoísta. E agora? Na terra só persegui os negros, não aluguei casa, não apertei a mão. Meu Deus, você é negro, que desilusão! Será que vai me dar uma morada? Será que vai apertar minha mão? Que nada. Meu Deus, você é negro, que decepção. Não dei emprego, virei o rosto. E agora? Será que vai me dar um canto, vai me cobrir com seu manto? Ou vai me virar o rosto no embalo da bofetada que dei? Deus, eu não podia adivinhar. Por que você se fez assim? Por que se fez negro, negro como o engraxate, aquele que expulsei da frente de casa? Deus, pregaram você na cruz e você me pregou uma peça. Eu me esforcei à beça em tantas coisas, e cheguei até a pensar em amor, mas nunca, nunca pensei em adivinhar sua cor…”.

 

O autor é professor em Nova Santa Rosa

miglioranza@opcaonet.com.br

 

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