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Tarcísio Vanderlinde

Em tempos obscuros

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As referências disponibilizadas pela Bíblia Arqueológica (NVI) apontam para escritos que costumam não ser unanimemente aceitos como sapienciais, mas ressaltam a importância dos mesmos para estudos dos escritos sagrados. No caso do livro de Eclesiastes, a paleografia (estudo das escritas antigas) percebe influências de textos sapienciais mais antigos conhecidos no Egito e Babilônia. Supõe-se que o autor, que se acredita ter sido o rei Salomão, tenha feito uso de literatura sapiencial dos grandes centros do mundo antigo.

O texto de Eclesiastes é muito instigante, e adequado para tempos obscuros como os que estamos a viver. Aparentando um pessimismo exagerado, é possível entender que a força do novo deslumbrava a todos, menos o autor da obra. O mundo continuava cheio de injustiças, a tomada do poder político não garantia mudança, a riqueza e a razão filosófica continuavam enganosas e ao final, ricos e pobres, sábios e ignorantes, humildes e arrogantes, partiam todos para um mesmo lugar.

Às vezes não se tem muita clareza da época em que determinado texto foi escrito. Contudo, os estudos demonstram que fragmentos da Epopeia de Gilgamés, texto conhecido no antigo império babilônico, e datado de 2000 a.C., encontram-se presentes no Eclesiastes. A questão é: onde eles se aproximam e onde se diferenciam?

Eclesiastes e a Epopeia de Gilgamés discorrem sobre a mesma questão humana: como é possível viver quando a vida aparentemente não faz sentido?

A despeito da ligação literária entre elas, as duas obras pertencem a mundos teologicamente diferentes. A Epopeia convoca os leitores a desfrutar a vida, mas não apresenta nenhuma fonte de esperança duradoura. Já em Eclesiastes, os enigmas e os aborrecimentos da vida são temperados pela esperança que subsiste quando o indivíduo se lembra de Deus e o teme:

“Em meio a tantos sonhos absurdos e conversas inúteis, tenha temor de Deus. […] O ímpio pode cometer uma centena de crimes e, apesar disso, ter vida longa, mas sei muito bem que as coisas serão melhores para os que temem a Deus, para os que mostram respeito diante Dele. […] Agora que já se ouviu tudo, aqui está a conclusão: tema a Deus e obedeça aos seus mandamentos, porque isso é essencial para o homem”.

Machado de Assis, ícone da literatura brasileira, acrescenta sábia advertência que também já havia percebido no livro do rei: “Bem diz o Eclesiastes: algumas vezes tem o homem domínio sobre outro homem para desgraça sua. O melhor de tudo, acrescento eu, é possuir-se a gente a si mesmo”.

 

O autor é professor sênior da Unioeste

tarcisiovanderlinde@gmail.com

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