Elio Migliorança
Nuremberg é aqui
Durante os depoimentos na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, vários senadores fizeram referência ao julgamento pelo Tribunal de Nuremberg, comparação que para muitos caiu no vazio, pois a maioria não conhece o fato. Para entender o nó da questão, retornemos no tempo por 75 anos.
De 20 de novembro de 1945 a 1º de outubro de 1946, na cidade de Nuremberg, na Alemanha, uma Corte Internacional começou o processo para julgar os crimes cometidos pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Foram julgadas 185 pessoas, das quais 35 foram absolvidas. Esta cidade foi escolhida porque ali ocorreram as maiores manifestações de Hitler, podendo ser considerado o centro espiritual do Terceiro Reich. E o palácio onde se realizou o julgamento havia permanecido quase intacto após os bombardeios das forças aliadas, e nele havia espaço suficiente para manter os prisioneiros a serem julgados.
Durante o julgamento, vários acusados quiseram safar-se da responsabilidade, alegando que estavam obedecendo ordens superiores e, portanto, não eram responsáveis por seus atos e pelas consequências, mesmo que tivessem provocado a morte de milhares ou milhões de seres humanos. Chegamos ao ponto, elo com os depoimentos à CPI.
Vários depoentes que ocupam cargos públicos, alguns em cargos efetivos e outros com cargo político, quiseram justificar seus atos com a mesma alegação: ordem superior para fazer ou deixar de fazer algo, já que o crime pode ocorrer tanto por ação como por omissão.
Chegamos a uma questão relevante, porque ela é estratégica em qualquer tempo no serviço público. É lícito, é correto e deve alguém obedecer a uma ordem superior mesmo quando ela contraria a lei? Deve o subordinado cumprir a ordem mesmo que isso coloque a vida de outros em risco?
E aqui podemos encontrar a resposta se voltarmos no tempo por 33 anos, quando estava sendo escrita a Constituição hoje em vigor. Até 1988, só algumas categorias do serviço público eram efetivos, ou seja, não podiam ser demitidos da sua função ou cargo. A nova Constituição estendeu esta estabilidade dos concursados para todas as categorias do funcionalismo público, justamente para evitar as demissões políticas que prejudicavam o serviço público. A cada eleição, o novo prefeito, governador ou presidente demitia os servidores e nomeava os seus companheiros e assim a cada quatro anos tudo começava de novo do ponto zero. Com a estabilidade, criou-se a carreira funcional e assim o funcionário que não pode ser demitido, pode e deve, sim, enfrentar e descumprir a ordem quando ela for ilegal ou colocar alguém em risco de morte.
Partindo do pressuposto de que “tanto é ladrão quem entra na horta como quem fica na porta”, alguém alegar que o subordinado agiu por conta, ou este eximir-se da responsabilidade porque a ordem veio de cima, não combina com nossa Constituição. Por isso a citação de Nuremberg não é descabida; estamos debatendo as mesmas alegações.
Se o prefeito nomeia o secretário, a lei entende que sendo um cargo de confiança, tudo o que o secretário faz é com o consentimento ou conhecimento do prefeito que o nomeou, portanto, ambos são responsáveis. Eis porque ao nomear alguém é preciso que seja realmente confiável ou pode-se pagar caro por isso.
O autor é empresário rural, professor aposentado e ex-prefeito de Nova Santa Rosa