O Presente
Osnei Alves

O paradoxo da existência humana

calendar_month 29 de abril de 2025
8 min de leitura

A existência não é algo que se possa meramente classificar ou mensurar, pois é um desdobramento ou acontecimento que não se deixa compreender a não ser sendo um indivíduo. Encontramo-nos em uma situação na qual o que somos não está predeterminado, mas é antes resultado das nossas ações.

Aprofundemos essa dialética fundamental da existência humana. Atravessa-a em todos os tempos e lugares e nos diferentes espaços da cultura e do existir. O dilema entre relativo ou absoluto esbarra em situação insolúvel. A tensão permanece interna a ambos. Onde se planta o relativo, o absoluto se insere dentro. Onde se afirma o absoluto, o relativo espreita e inocula o germe dissolvente. Portanto, não há relativo sem absoluto e não há absoluto sem relativo. O puro relativismo e o puro absoluto na história humana escapam da intelecção, caem no absurdo, no internamente contraditório.

Essa consideração abstrata concretiza-se em mil situações. À guisa de exemplo, tomemos a realidade do amor. Nela, como em nenhuma outra, aparecem claramente as duas dimensões de absoluto e relativo. Porque elas conflitam frequentemente, o amor se tornou na vida humana a maior fonte de felicidade como de sofrimento.

Todos experimentamos, bem ou mal, o amor. Ninguém teria coragem de dizer que nunca o vivenciou. Passaria por monstro. Desde os poetas até o mínimo sujeito perdido no cotidiano anódino pronunciam a palavra “amor” para significar algo que experimentaram. Ninguém nega que o amor encerra a dimensão absoluta. Em outras palavras, o amor humano, ao desejar e proclamar a eternidade nas palavras, visibiliza a realidade de Deus-Amor que deseja, realiza e é eternidade. Inequivocamente, o amor manifesta ao máximo a dimensão de absoluto. Se não houver tal toque absoluto, já não é amor.

Por outro lado, como aparece dolorosa a relatividade dos amores. Nascem e morrem, acontecem aqui e lá, hoje e amanhã, ontem floresceu hoje fenece. Passa-se do amor ao ódio. No interior das pessoas, misturam-se os sentimentos, as impressões da face límpida e maravilhosa do dom amoroso de si e a busca de si, egoísta, anti-amor, ora sutil, ora descarada. Lado sofridamente relativo. Quiséramos segurar a eternidade do amor na forma relativa que o vivemos. Mas ele se nos escapa. Vivemos tão imersos no tempo e no espaço, que toda eternidade e toda absolutidade humana se contaminam do relativo.

A lucidez nos recorda essa dupla dimensão constante do amor humano. Dirige-nos o olhar ora para um polo, ora para o outro. Nas crises de relativismo, a mirada para o absoluto do amor nos liberta, anima, encoraja. Na experiência inebriante do absoluto do amor, um discreto voltar-se para a caducidade da forma, para a fragilidade da liberdade humana volúvel, para o finito de nossas possibilidades nos mantém nos limites da história e da nossa fissura radical existencial.

Os poetas e pensadores exprimem com clareza tal dualidade relativa e absoluta do amor. “Só o amor crê na imortalidade. Isso só podemos aprendê-lo ao lado de uma pessoa que nos ama e que nós amamos. Não se chega ao céu a não ser a dois.” A fé na eternidade aponta para o absoluto, mas a aprendizagem do amor se faz na relatividade de um outro que amo. A dois — relativo — se chega ao céu — absoluto.

A cultura oferece-nos estabilidade e segurança. Dá-nos significado aos gestos, aos ritos, às palavras, às ações, às instituições que nos cercam. Enfim, faz-nos habitar um mundo que entendemos o suficiente para nele viver. Imaginemos ser transportados num instante para um universo em que não entendemos nada. Os carros andam em direções que nos parecem arbitrárias.

O homem  produz  a  linguagem  e  por  meio  dela  os  símbolos que permeiam os aspectos não materiais da vida. Diante da instabilidade que permeia a existência humana e na busca pelo equilíbrio, o homem constrói um mundo a partir de sua capacidade ativa, especializa seus  impulsos  e  provê  a  si  mesmo  de  estabilidade. Importa ressaltar que esse  processo  só  se  torna  possível  pela  especificidade  relacional humana: ser consciente de si, aberto ao outro e capaz de formar grupos, comunidades e sistemas sociais.

Esticamos a mão para saudar alguém e este agarra-nos e joga-nos ao solo, aceitando um desafio que não fizemos. Inclinamos a cabeça em sinal de reverência, tomam-nos como seres escravos. Multiplicam-se ao infinito os mal-entendidos, simplesmente porque a cultura diferente em que nos encontramos não cumpre sua função. Ela gera insegurança em vez de estabilidade. Processou-se subitamente mudança radical.

O exemplo levado ao extremo oferece intelecção para o que está a acontecer na cultura atual por causa da celeridade das mudanças. As pessoas que abandonam o campo e vêm para a cidade sofrem doloroso choque cultural. Desaparecem-lhes as referências. Suas tradições religiosas, familiares e seus comportamentos sociais chocam-se com a realidade urbana bem outra. A sociologia religiosa, com base em levantamentos estatísticos, demonstrou como o abalo cultural provocado pela cidade nas pessoas vindas do campo explicava a abrupta queda das práticas religiosas.

O problema amplia-se do campo religioso para outras referências fundamentais da vida. Se a cultura tradicional, conservadora tendia a fixar, a sacralizar os conceitos, as práticas e os ritos, a cultura moderna urbana produz o contrário. Relativiza os valores herdados, revisa os comportamentos estabelecidos, aponta para movimentos de mudança.

A tecnologia desempenha fator fundamental no processo de mudança. Daí a dupla atitude em face dela. Os modernizantes assumem-na com entusiasmo, ao endeusá-la. Entram de corpo perdido no movimento irreversível e acelerado das novidades tecnológicas. Os tradicionais adotam postura tecnófoba, ao demonizá-la.

O embate com as mudanças culturais acontece diversificadamente. O primeiro encontro se dá no mundo das coisas. As primeiras que nos tocam os sentidos. Já a velha escolástica repetia: nada existe no intelecto sem antes ter estado nos sentidos. Para além da teoria do conhecimento, tal sentença reflete profunda sabedoria popular. Parafraseando, nada acontece no coração sem antes ter passado pelos sentidos.

Com que facilidade substituímos a escrita manual pela máquina de escrever comum, depois elétrica e hoje pelo computador! Da mesma maneira, antes cada toque de telefone interurbano assustava a família. Lá vinha alguma notícia de doença grave ou morte. Hoje, com o celular, as pessoas compulsivamente se comunicam a cada instante. Rimos das indumentárias das pessoas nas fotografias antigas. As saias subiram, os decotes desceram, as blusas encurtaram. Com que rapidez e difusão! Que dizer da inundação automobilística para quem conheceu as grandes cidades silenciosas com meninos a jogar bola nas ruas!

O primeiro andar material, das coisas, do dinheiro, do consumo, das relações econômicas passou por reconstrução radical. Irreconhecível. Todas as instâncias envolvem-se na aceleração das mudanças sob duas formas. Cada mudança concreta repercute de certa maneira nos outros níveis. Além disso, cria-se a mentalidade de mudança, de instabilidade, de novidade, de impermanência, que se estende a tudo. Aqui reside a maior novidade, e valora-se como algo positivo a mudança como tal, independentemente de qualquer outro juízo.

Certo dia um menino americano saiu cedo para comprar leite e pão para o café, como fazia todos os dias. Por distração, errou o trajeto e não encontrou o prédio da padaria. Voltou para casa e com a cara mais lavada disse para a mãe: “Transportaram a padaria para outro lugar”. Na consciência daquele menino era possível de um dia para outro arrancar um prédio e levá-lo para outro lugar. Os milagres da mentalidade de mudança!

A lucidez entra em jogo. Mudar como tal não implica qualquer valência positiva nem negativa. Os critérios vêm de outro lugar. A ideologia da mudança falseia tal análise. Impõe-na como se estivéssemos em processo linear de crescimento e desenvolvimento positivos. Substitui-se o esquema circular pelo linear em todos os campos. Caminhar em direção ao abismo não significa nenhum avanço a não ser para a morte. A primeira pergunta ‘a mudança: para onde se muda? Só tem sentido mudar da morte para a vida, da dominação para a libertação, da tristeza para a alegria, da dor para o gozo, do sofrimento para o alívio.

Na compreensão de si mesmo em relação à abundância e à mutabilidade das coisas, ameaça ao ser humano o risco de tornar-se joguete das coisas na terrível farândola da crescente produção de bens. O sistema capitalista está a transformar o cidadão em consumidor. Só faz parte da sociedade que consome e à medida que o faz. Quanto mais participa do mercado, mais cidadão. Vale o contrário. Quem vive do lixo situa-se no extremo da exclusão.

A lucidez crítica inverte o vetor. O ter só adquire significado na proporção em que se vincula ao ser. As coisas foram criadas, segundo a narração bíblica, a serviço do homem para que ele simplesmente existisse. Em versão antropológica, o ter serve à realização do ser do homem na última finalidade. A lucidez interfere relembrando o destino derradeiro do ser humano e orientando o uso das coisas nessa direção.

Quem é Osnei Francisco Alves


  • Osnei Francisco Alves é especialista na área de gestão, estratégia empresarial, marketing, comunicação, tecnologia, educação, entre outras. Escritor de livros e artigos científicos. Atualmente, gerente executivo do Senac em Marechal Cândido Rondon.
    consultorosnei@gmail.com
 
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