Durante a Idade Média proliferaram pela Europa muitas lendas sobre a Terra Santa. Em alguns casos as histórias sobreviveram e ainda costumam nos surpreender. O assunto tem muito a ver com as campanhas dos Cruzados na região (1096-1270). Relíquias e objetos considerados sagrados, muitos deles procedentes da Terra Santa, e sobre os quais se creditavam poderes miraculosos, eram colecionados por nobres e reis.
Peças consideradas únicas, costumavam às vezes aparecer em duplicidade num claro indício que por ali poderia haver alguma lenda. Há o curioso caso de Frederico o Sábio, protetor de Martinho Lutero que tinha um acervo de milhares de objetos sagrados. Eram considerados meios de graça, proteção para enfermidades, perigos, e o príncipe confiava nisso.
Na biografia de Martinho Lutero, o historiador Martin Dreher conta que o monge ainda jovem tinha visitado Roma. Lá viu diversos objetos que desafiavam a imaginação humana, mas que naquele momento, não achava motivo nenhum para contestar: “Acreditei em tudo”, teria dito Lutero mais tarde.
Nas visitas que fez, visualizou suposta escada que Jesus subira para chegar ao palácio de Pilatos. Segundo a tradição, ela havia sido transportada de Jerusalém para Roma por anjos sem que lhe houvesse causado qualquer dano. Lembrou que lhe haviam mostrado a corda com a qual Judas se enforcara, e uma pedra, na qual havia um sulco da espessura de um dedo, formado pelas lágrimas de arrependimento derramadas por Pedro por causa da negação de Jesus.
A experiência de Lutero nos remete a convicções pessoais, que ao meu ver devem ser respeitadas. O incêndio da catedral de Notre Dame de Paris em 2019, entre outros aspectos, demonstrou a importância que muitas pessoas, ao serem estimuladas pela tradição, outorgam às relíquias com algum significado religioso, mesmo às vezes duvidando da autenticidade das mesmas. É o caso, por exemplo, da “Coroa de Espinhos de Jesus”, relíquia que teria chegado a Paris na época dos Cruzados e é hoje guardada na catedral de Notre Dame após sua restauração.
O teólogo João Calvino refletiu sobre o uso de relíquias no âmbito do cristianismo e deixou importante escrito sobre o assunto. O clérigo destacou a relevância da memória e da leitura como forma de levar ao mundo os conhecimentos éticos e científicos, que como ele experimentou, permitiram descobrir as falsificações e as manipulações que se fizeram a partir dos escritos bíblicos.
No intuito de buscar respostas aceitáveis para determinadas questões, a arqueologia bíblica procura se pautar na materialidade de objetos ou locais que apresentam relações com as narrativas dos textos sagrados. Em muitas circunstâncias, as crenças se sobrepõem às evidências materiais. É isso. Esquece-se às vezes, que tradição e materialidade costumam ser parceiras de viagens nas narrativas históricas.

Por Tarcísio Vanderlinde. O autor pesquisa sobre povos e culturas do Oriente Médio.
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