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A saída é ficar rico – por Amir Kanitz

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(Foto: Divulgação)

Para efeitos individuais essa é uma dica um tanto óbvia, pois logo nos ocorre o que faríamos e o que deixaríamos de fazer se ficássemos ricos, de modo que formamos uma imagem muito clara das facilidades que seriam imediatamente desfrutadas.

Muito além disso, a ideia é que a sociedade precisa enriquecer para melhorar. Não apenas para que as pessoas possam desfrutar de mais facilidades, mas para sermos de fato uma boa sociedade. Neste caso, apenas aumentar o PIB, por exemplo, não causa efeitos positivos e imediatos tão óbvios assim, pois a questão é o ciclo de pobreza que reflete uma cultura de fragilidades que não nos permitem prosperar, experimentar ou evoluir. E dinheiro não compra uma nova cultura. Portanto, uma sociedade rica significa muito mais do que dinheiro circulando nela.

A estabilidade econômica é, todavia, fundamental. O Nobel de economia Angus Deaton publicou em 2020 com a economista Anne Case o livro Deaths of Despair and the Future of Capitalism, em que analisam como a instabilidade econômica e a precarização do emprego aumentam as taxas de mortalidade, além de mostrar uma espiral de destruição das famílias, que ficam mais vulneráveis a separações, as crianças com mais dificuldades na escola e os adultos se limitando a lutar pela sobrevivência. Em cenários assim, exigir envolvimento político coerente, maturidade e cidadania, se torna um esforço quase supérfluo, pois não há como as pessoas pensarem na coletividade quando vendem o almoço para comprar a janta.

Viver em uma sociedade rica não é apenas um objetivo final, mas também uma base necessária. O cientista político Robert D. Putnam demonstrou em seu estudo Growing Class Gaps, como a pobreza gera a fragilização dos arranjos familiares, aprofundando um ciclo de estagnação social que resulta em desastrosos reflexos políticos.

A pobreza acaba cimentando existências precárias. Para amplos setores empobrecidos o futuro é artigo de luxo. Sem perspectivas as pessoas são consumidas por práticas que as distanciam do próprio desenvolvimento pessoal. Nesse contexto a educação formal – considerada como uma via de preparação pessoal para o futuro – está diretamente relacionada ao encurtamento das expectativas. O artigo de Putnam aponta que nos EUA – e não há motivos para acharmos que estamos melhores por aqui – nos dois terços menos instruídos da população, em que as mulheres têm apenas o ensino médio ou menos, cerca de 60% das crianças nascem fora do casamento. Assim, a mãe que tem apenas ensino médio ou superior incompleto tem filhos em média dois anos antes do casamento, enquanto a mãe universitária os tem depois de dois anos de casamento. Parece que o casamento se tornou um assunto de gente rica, tanto que os filhos de pais ricos e instruídos atualmente têm muito mais probabilidades do que outras crianças de crescer em um lar com os dois pais presentes.

O ciclo se perpetua, de modo que os ricos investem cada vez mais tempo que os outros pais no desenvolvimento de seus bebês e filhos pequenos. Em geral, os pais com formação universitária dedicam à educação de seus filhos cerca de uma hora por dia a mais do que os pais que têm apenas o ensino médio. Putnam reuniu dados de como os pais com diploma de nível superior têm o dobro de probabilidade de ler todos os dias para os filhos, quando comparados a outros pais. Os ricos também costumam conversar mais com os filhos e de forma muito mais interativa do que os demais: um filho de três anos, de pais com profissões e ganhos estáveis, terá ouvido cerca de 20 milhões de palavras a mais do que uma criança de três anos filha de pais sem profissão definida, e mais de 30 milhões de palavras mais do que um filho de três anos de pais mantidos por programas de transferência de renda.

Um dos mais conceituados autores atuais sobre o tema da meritocracia, Daniel Markovits, em um estudo de mil páginas reuniu referências que mostram como “pais ricos e instruídos geralmente demonstram mais afeto pelos filhos, participam mais da vida deles e proporcionam uma disciplina mais consistente do que seus congêneres de classe média e, principalmente, pobres. Esses investimentos diferenciados dão às crianças da elite recursos emocionais — extroversão, autoconfiança, disciplina e coragem — que as crianças pobres e de classe média não conseguem igualar”. O autor apresenta resultados de pesquisas recentes sobre a relação entre aptidões não cognitivas e o sucesso na vida, indicando que essas diferenças emocionais entre as crianças de elite e as de famílias pobres na primeira infância têm consequências ainda maiores do que as diferenças cognitivas.

Progressivamente, as famílias ricas podem investir em uma ordem social meritocrática do ponto de vista acadêmico, vocacional e emocional, mais do que as demais famílias. E a defasagem alcança até mesmo a classe média que, em países como o Brasil, passou a ser chamada de “precariado”, por estar aprisionada no que se tem denominado como armadilha do baixo crescimento. A classe média ficou mais próxima da pobreza, e quando seu consumo aparece muito acima dos mais pobres podemos dizer que essa melhor situação revela uma “síndrome do pato”, que designa o contraste entre o suave deslizar do pato na superfície e o frenético bater de pés debaixo d’água para impulsioná-lo.

É importante olharmos para isso tudo como um problema que vai além de dificuldades pessoais e familiares. É um problema social. O mega industrial e filantropo Andrew Carnegie, ainda em 1889 escreveu em seu O evangelho da riqueza que “o problema de nossa era é a adequada administração da riqueza, para que os laços da fraternidade ainda possam unir ricos e pobres numa relação harmônica”.

Vidas precárias formam uma teia social precária. A incerteza não permite o desenvolvimento da confiança que é necessária a uma sociedade vibrante e produtiva.

O baixo valor econômico de gerações completamente absorvidas pelas necessidades mais básicas forma multidões socialmente desvalorizadas e politicamente ressentidas, que compartilham um turbilhão de recriminações, desrespeitos e disfunções que deformam a vida social e política.

Esse é um diagnóstico que não pretende atacar ninguém, mas que deveria desconcertar a todos nós.

A pobreza gera distanciamento das questões públicas, o que aumenta a desigualdade política e por fim sabota a democracia. E antes que me acusem de comunista é importante ressaltar que essa apreensão serve justamente para evitar saídas revolucionárias, pois a renitente concepção marxista para “classe dominante” vai se tornando real em sociedades empobrecidas, já que é nestas que se impõem obstáculos à mobilidade social.

Se não enriquecermos como sociedade teremos existências precárias continuamente assombrando a vida política. As elites vão se separando da sociedade de cujo apoio político já não necessitam, enquanto a classe média e os pobres adotam o ódio populista e o ressentimento, rejeitando o conhecimento e as instituições, e atacando tudo o que lhes parece estranho ou desconhecido. Uma sociedade empobrecida sempre está sob o risco de se desintegrar rapidamente, pois na luta pela sobrevivência nos organizamos por meio de padrões, práticas e visões de mundo que raramente se cruzam, mas que apenas interagem o mínimo para fins específicos, quase fisiológicos, e ficamos cada vez mais distantes, estranhos e mutuamente insensíveis.

A riqueza baseada apenas no pináculo social não basta, e pode até ser fator de ruína. Para entender melhor isso podemos fazer uma comparação ilustrativa: muito provavelmente você já ouviu falar a respeito da “maldição” que recai sobre os países ricos em recursos naturais — como petróleo, ouro ou diamantes — que são quase sempre menos ricos do que os que têm poucos desses recursos. A distorção que a posse de recursos naturais causa na economia é explicada pela tendência para a concentração de riqueza e poder numa pequena casta de proprietários dos recursos. Desse modo é tristemente normal que países ricos em recursos naturais não invistam em educação de massa, suprimindo as rotas para produtividade e inovação, de maneira que nunca formam classes médias produtivas e dinâmicas. Também é comum que países assim consolidem instituições sociais e políticas corruptas, feitas sob medida para proteger os interesses de uma elite poderosa à custa do bem público. Devido a isso, os países ricos em recursos naturais crescem mais lentamente do que os demais.

Voltando ao nosso caso, quando a riqueza em capital humano reside em uma diminuta parcela da sociedade temos uma versão dessa maldição. No Brasil estamos longe de ostentar uma riqueza de capital humano que seja socializada, e os setores desenvolvidos são incapazes de fomentar o enriquecimento geral, o que distorce a vida social e a prática política.

Podemos entender, portanto, que nesses termos uma sociedade rica é uma sociedade melhor e vice-versa, afinal, a boa sociedade é aquela que se enriquece. E se você prestou atenção até aqui já sabe que não será o Estado a mover isso sozinho, pois ele é fator de desigualdade, uma vez que reflete os interesses de castas bem organizadas.

Então, como enriquecer? Ora, não vamos cair na cilada do coach financeiro pobre, né? Quem pode nos ensinar a enriquecer é quem enriqueceu por seus méritos! E para isso precisamos do protagonismo de elites que balizem e inspirem o enriquecimento da sociedade. E muita atenção aqui, pois esse processo ocorre de duas maneiras: 1) preparando o meio corporativo para atuar em questões públicas, de modo que pressione a eficiência do Estado em inovações para a solução de problemas públicos; e 2) com o provimento de um cultura da iniciativa privada que aprimore a cooperação, abraçando famílias e comunidades por meio de seus colaboradores – para se ter uma ideia, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos afirma que a pessoa a quem você se reporta no trabalho é mais importante para sua saúde do que seu médico. As lideranças corporativas provocam um profundo impacto na maneira como os liderados tratam seus cônjuges, seus filhos e sua comunidade.

Porém, o envolvimento do setor privado em projetos para a superação do empobrecimento social não pode ser hipócrita ou superficial. A iniciativa privada já entendeu há tempos que precisa investir em conhecimento para ter bons resultados em suas áreas de atuação. Mas estranhamente muitos continuam pensando que uma atuação social e política pode ser feita com base em percepções rasas e de senso comum sobre a realidade.

Já foi repetido à exaustão que para o Brasil crescer precisamos de estabilidade, crescimento econômico e produtividade. A isso acrescento que para sermos prósperos precisamos socializar o capital cultural e humano. E só divide quem já tem.

 

Amir Kanitz é sociólogo, professor e secretário-executivo do Instituto Pessoas Melhores (IPM)

 

 

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