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Projeto que pode afrouxar regras no trânsito gera questionamentos

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Autoridades dos setores de segurança pública e trânsito defendem que as alterações podem colocar a população em perigo e causar um retrocesso nos avanços obtidos nos últimos anos, quando houve maior rigidez na legislação e uma redução do número de acidentes e mortes no trânsito. O texto, no entanto, ainda será discutido pela Câmara e pelo Senado (Foto: O Presente)

 

Projeto de lei apresentado pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) na semana passada e que altera pontos do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) tem sido alvo de constantes e acirradas discussões e críticas, em especial por entidades e órgãos ligados à segurança no trânsito. O dispositivo, entre outras mudanças, dobra a pontuação necessária para suspensão da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) de 20 para 40 e a validade do documento, que passa a ser de dez anos.

A iniciativa do Planalto também elimina multa para motorista que trafegar com criança sem a cadeirinha de retenção. Hoje, o valor da sanção é de R$ 293,47. Caso flagrado cometendo a infração, considerada grave, o condutor receberá apenas uma advertência por escrito. Além disso, o projeto acaba com a exigência de exame toxicológico para motoristas profissionais das categorias C, D e E (caminhões, ônibus e vans) e estabelece multa mais branda para quem circular sem capacete. O texto, no entanto, ainda será discutido pela Câmara e pelo Senado e somente se for sancionado se tornará lei.

Na justificativa da proposta, o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, afirmou que, ao mesmo tempo em que se garante a manutenção da exigência, foram tomadas providências para “evitar exageros punitivos”. Seguindo a mesma linha, Bolsonaro, crítico frequente do que chama de “indústria da multa”, já havia afirmado que durante o seu governo não seriam instalados novos radares eletrônicos nas rodovias federais do país.

 

PREOCUPAÇÃO

Após o projeto de lei ser entregue na Câmara dos Deputados, o conjunto de mudanças foi criticado por diversas entidades de segurança viária fundamentado pela falta de estudos técnicos que comprovem os benefícios das alterações.

Para autoridades do setor de segurança pública, essas alterações podem colocar a população em perigo e causar um retrocesso nos avanços obtidos nos últimos anos, quando houve maior rigidez na legislação e uma redução do número de acidentes e mortes no trânsito.

Em contrapartida, Bolsonaro alega que a ideia “seria transformar a vida do cidadão mais fácil”. “Eu vejo que a gente precisa mesmo facilitar a vida no trânsito, mas não pode adotar mecanismos que facilitem a vida no trânsito e exponham a vida das pessoas”, opina o secretário de Mobilidade Urbana de Marechal Cândido Rondon, Welyngton Alves da Rosa.

Conforme ele, apesar de o Código de Trânsito Brasileiro atual estar vigente há mais de 20 anos, ainda é preciso falar do uso do cinto de segurança, da cadeirinha e do capacete, mostrando que não há conscientização e voluntariedade do motorista em respeitar as regras de trânsito. “Muitas das situações na área do trânsito são impostas porque há punibilidade. Muitos motoristas, infelizmente, são conscientes do seu direito de dirigir e das suas obrigações porque tem a punição. Do contrário, eles não teriam aquela consciência natural que a gente espera de um bom motorista”, analisa.

Rosa pensa as medidas, principalmente a que envolve o uso da cadeirinha, como uma questão para eliminar a punibilidade pecuniária em relação ao motorista. A situação, porém, é vista com preocupação por parte do secretário. “É necessário o uso da cadeirinha. Estudos comprovam isso. A morte infantil em decorrência do trânsito está caindo ano a ano no Brasil. Vidas estão sendo preservadas por mecanismos que estão sendo adotados há muito tempo”, pontua.

O secretário também coloca o fato de a atual geração de motoristas ser inconsciente e desvirtuada. “Ela não veio com essa geração do Código de Trânsito Brasileiro. Nós estamos formando uma nova geração de motoristas muito mais conscientes, mas a geração que já existia, com as regras anteriores ao CTB não respeita, tanto que os números são assustadores: 55 mil mortes por ano. Nem guerras produzem isso. Nós vivemos uma guerra no dia a dia do trânsito brasileiro”, expõe.

Certas mudanças radicais e de postura em nível de trânsito são vistas com preocupação por Rosa, principalmente quando envolvem medidas protetivas de pessoas dentro de veículos ou em motocicletas. “É óbvio que o governo tem interesse em fazer medidas que venham muitas vezes a agradar o eleitorado dele, como é a questão de não punir com valores pecuniários o motorista. Só que em relação a isso, a falta de punibilidade pode provocar o abuso do motorista”, diz, exemplificando: “Por que ocorre tanto abuso com relação a pedestres e ciclistas? Porque não tem punibilidade. Nós verificamos em muitas situações ciclistas conduzindo bicicletas de forma errada, agressiva, mas não temos mecanismos de punição. A punição não serve para ofender a pessoa no momento da infração e de ela ter que pagar um valor. A punição serve para corrigir o motorista, por isso existe a multa de trânsito. Se essa penalidade não existir, infelizmente a incidência de certas infrações de trânsito será muito mais consistente do que outras”.

O secretário de Mobilidade Urbana também se declara contra a ideia de dobrar o prazo de validade da habilitação (dos atuais cinco para dez anos) e ampliar o limite máximo de pontos que um motorista pode ter sem perder a habilitação, de 20 para 40 pontos, dentro de um ano. “Eu acho que 20 pontos já é um número muito elevado. Se verificar, é possível cometer muitas infrações de trânsito até chegar a 20 pontos, e é temerária essa mudança, porque com certeza vai fazer com o que o motorista se sinta muito mais passível de cometer infrações e não ter sua habilitação apreendida ou cassada. Vai causar no motorista uma sensação de impunidade”, salienta.

Além disso, o aumento no tempo de renovação da CNH também é visto como precipitada na visão de Rosa, tendo em vista, por exemplo, que a saúde é muito dinâmica. “A gente verifica que a renovação da CNH não está com tempo muito dilatado. A grande reclamação dos motoristas hoje é com o valor da renovação, que incide em um custo alto. Penso que o governo deveria analisar a situação e diminuir taxas de renovação, mantendo o mesmo prazo. Cinco anos para renovar um documento que você usa todos os dias não é um prazo muito grande. Sem contar que estamos falando e mexendo com vidas humanas. Nós não estamos renovando um passaporte, uma identidade. Estamos renovando uma permissão para dirigir um veículo que, mal utilizado, é o mesmo que utilizar uma arma sem o porte. Estamos lidando com vidas humanas e o prazo, que está concretizado através de estudos, não deveria ser mexido”, opina.

 

Secretário de Mobilidade Urbana, Welyngton Alves da Rosa: “Muitos motoristas, infelizmente, são conscientes do seu direito de dirigir e das suas obrigações porque tem a punição. Do contrário, eles não teriam aquela consciência natural que a gente espera de um bom motorista” (Foto: O Presente)

 

EXCLUSIVIDADE

Outro ponto polêmico do texto do projeto de lei é a retirada do Departamento de Trânsito (Detran) de cada Estado a exclusividade das clínicas para os exames de saúde para obtenção ou renovação do documento. As avaliações poderão ser feitas em qualquer clínica, inclusive no Sistema Único de Saúde (SUS), caso o projeto de lei seja aprovado. Para Bolsonaro, a medida acabará com o “monopólio do Detran”. “Isso é preocupante porque a realidade desses exames pode ser alterada facilmente. Só pegar exemplos de pessoas que tenham amigos médicos”, comenta o diretor da Auto Escola Marechal, Tiago Almir Port.

Em se tratando da validade da CNH, para Port, dez anos é um tempo muito grande para uma pessoa refazer os exames e mostrar ao Departamento de Trânsito que está em condições físicas e mentais para continuar conduzindo veículos. “Hoje, normalmente são cinco anos o máximo de validade que existe. E acima de 65 anos são três anos. Se essa validade aumentar para dez e cinco anos, será muito tempo sem refazer essa avaliação médica”, avalia.

Port justifica seu posicionamento lembrando que muitas situações podem acontecer no decorrer desses anos. “Vamos falar da situação mais simples que ocorre hoje: a mudança na acuidade visual. Isso muda de um ano para o outro. E se a pessoa chega às vezes no quinto ano com o grau mais forte, imagina dez anos”, cita, acrescentando: “Essa é a coisa mais simples para se falar. Sem contar outras coisas que podem acontecer, às vezes um acidente de trânsito com amputação de um membro, até na questão da visão que a pessoa pode perder um olho, tudo isso são situações que podem acontecer”.

Ele lembra também que com o aumento da pontuação necessária para a suspensão da CNH o motorista vai se tornar um pouco mais inconsequente. “Existem os dois lados desse aumento da pontuação, porque quem tem como profissão hoje ser motorista realmente 20 pontos é pouco, visto estar todos os dias, oito horas na estrada. No Brasil, vinha se instalando muitos radares, a fiscalização era muito forte no sentido de multas de velocidade por uma questão de, talvez, se aumentar uma arrecadação. Para essa pessoa, o aumento dos pontos é um ponto positivo. Agora, para quem só anda dentro da cidade pequena pode entrar a questão do abuso”, declara.

 

Diretor da Auto Escola Marechal, Tiago Port: “Hoje, normalmente são cinco anos o máximo de validade que existe. E acima de 65 anos são três anos. Se essa validade aumentar para dez e cinco anos, será muito tempo sem refazer essa avaliação médica” (Foto: O Presente)

 

ACIDENTES

Na opinião do aspirante Ricardo Augusto Maioque Baggio, do 3º Subgrupamento do Corpo de Bombeiros de Marechal Rondon, é preciso analisar que o aumento para 40 pontos na CNH significa que o motorista pode dobrar o número de infrações antes de ter a carteira suspensa e passar por uma nova reciclagem. São pontos delicados, entende ele, já que isso pode levar o condutor a ser um pouco mais displicente com as regras de trânsito. “É possível que as mudanças contribuam com uma maior mortalidade no trânsito. Nós sabemos que, no geral, as leis são seguidas para evitar o pagamento de multas. Se for possibilitado o cometimento de mais infrações sem penalidade é possível que o número de acidentes aumente”, relata.

Para Baggio, mesmo que seja retirada a multa pela não utilização da cadeirinha, cada pai, mãe ou responsável deve ter consciência da importância e necessidade de manter crianças em segurança. “Não tem como mensurar o valor de um filho, de uma criança. Chega a ser malvado dizer que para um pai usar uma cadeirinha é preciso atribuir uma multa. Ao meu ver, se é meu filho e eu tenho um equipamento que vai proteger ele de forma mais eficaz, com certeza eu vou usar, independente de ser aplicada uma multa ou não”, afirma.

Apesar disso, ele diz ser difícil mensurar se a retirada da multa irá implicar no aumento de acidentes com crianças. “Acredito que um pai responsável tem a consciência de que se tem o equipamento ele deve ser usado, e quem não tem deve adquirir da mesma forma. Ressaltando que essa mudança não retira a atribuição de pontos na carteira, e sim apenas a parte pecuniária, que, hoje, se formos ver, não é tão expressiva quanto uma penalidade por dirigir alcoolizado”, exemplifica.

Baggio reitera e reforça a importância de se utilizar a cadeirinha para o transporte de crianças e o quanto a atitude pode evitar tragédias. “Hoje a gente ainda enfrenta algumas ocorrências por questão de, por exemplo, a mãe levar o filho no colo no banco da frente ao invés de colocar na cadeirinha. Já atendi ocorrências de capotamento onde a criança, mais leve, foi ejetada para longe. E os adultos não se enganem, porque não tem força para segurar uma criança dentro do carro em um acidente. Levar a criança no banco traseiro, no chão ou no colo não garante a segurança dela”, alerta.

 

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Aspirante Ricardo Augusto Maioque Baggio, do 3º Subgrupamento do Corpo de Bombeiros: “Nós sabemos que, no geral, as leis são seguidas para evitar o pagamento de multas. Se for possibilitado o cometimento de mais infrações sem penalidade é possível que o número de acidentes aumente” (Foto: O Presente)

 

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