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Depressão: o “câncer” da alma; veja o depoimento de quem convive com altos e baixos da doença

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Foto: Reprodução

“Acredito que a dor mais pesada que a depressão proporciona é a dor da alma. Um vazio impossível de descrever. A pessoa com depressão em estágio que tive, chamado transtorno depressivo maior, não consegue ver alegria em nada. Nem nos familiares, nem nos amigos. Em absolutamente nada. A única coisa que eu queria fazer era me abster de tudo e todos. Só queria me fechar no meu mundo. A solidão, por pior que fosse, era minha fortaleza.

Cheguei a pensar em cometer suicídio inúmeras vezes. A minha companheira, que muito me ajudou a superar e conviver com minha depressão, faleceu quando eu estava bem novamente. Com a morte dela, a depressão votou à tona, me levando aos pensamentos mais obscuros possíveis. Planejei diversas vezes no meu suicídio. Talvez não tenha consumado a minha própria destruição por ter crianças pequenas”.

O depoimento de José*, carregado de sentimentos e significados que muitas pessoas sentem, porém poucas compartilham, possibilita, pelo menos um pouco, compreender o sofrimento do outro.

Não há um padrão de sinais e comportamentos que indiquem a possibilidade de uma pessoa cometer suicídio, mas geralmente aqueles que têm uma relação íntima com as pessoas em sofrimento já observaram relatos muitos parecidos com este. Sofrimento. Isolamento. Inibição à convivência familiar e social. “Os parceiros e pessoas próximas, que têm um vínculo com a pessoa, sentem um afastamento afetivo, às vezes até um desligamento completo. Não é algo dito, mas é sentido. Elas percebem que a pessoa não está bem, contudo, existe uma dificuldade cultural de falar do nosso sofrimento e as pessoas preferem não falar sobre isso”, diz o psicólogo João Paulo Brunelo Miguel, coordenador do Comitê de Saúde Mental e Enfrentamento à Violência de Marechal Cândido Rondon.

Quando um suicídio acontece, muitas pessoas ficam surpresas com o fato e questionam o porquê daquilo ter acontecido. Mas não é incomum, posteriormente, ouvir relatos daqueles que tinham um contato íntimo com a pessoa sobre ela não estar bem. “Pior do que isso é o fato de ela não ter tido nenhum suporte, nenhuma ajuda ou tratamento. Dela estar por conta própria”, enfatiza.

O sofrimento, diz Miguel, tem intensidades. Às vezes a pessoa não está bem, mas consegue lidar com isso e dar continuidade às suas atividades cotidianas, como trabalho e a convivência em família. “Mas há momentos que determinadas situações agravam esse estado de sofrimento e a pessoa chega a ter um episódio depressivo, que pode se intensificar e, dependendo do grau de isolamento, ela ficar em risco”, pontua o psicólogo.

O sentimento de perda de valor tende a se inclinar para o pensamento de morte: a vida não tem mais sentido. Por que estamos vivos? Será que não era melhor eu morrer? “Depois, aparece a ideação suicida, que é o risco de fato. A pessoa começa a pensar de que maneira ela pode acabar com a própria vida, os métodos de fazer acontecer. E aí ela já está em alto risco e precisa de atendimento imediato”, evidencia o psicólogo.

Em momentos de desespero profundo, a pessoa executa o método. A tentativa de suicídio. “Nessa hora tudo fica anulado: a família, os amigos, o trabalho. É um sentimento de sofrimento insuportável e é como se fosse uma reação do organismo a pessoa dar fim à própria vida para acabar com o sofrimento. É um abismo”, menciona o profissional.

Miguel diz que é um perigo extremo uma pessoa que está em ideação suicida ficar em isolamento e não ter suporte social ou acompanhamento profissional. “No momento em que as pessoas próximas sentem a ruptura do vínculo afetivo é preciso fazer um acolhimento, ter apoio, cuidado e compreender a função desses comportamentos. O sentimento de desvalia, de perda de valor, é uma forma de comportamento que precisa ser compreendida pelos outros”, comenta.

 

ENTRE OS MAIS JOVENS

No âmbito da 20ª Regional de Saúde, as estatísticas mostram que as ocorrências de suicídio concentram-se nas faixas etárias dos 20 a 39 anos, abrangendo um público considerado ainda jovem.

O coordenador do Comitê de Saúde Mental e Enfrentamento à Violência diz que entender o motivo pelo qual os óbitos por suicídio incidem nesta faixa etária ainda é um fenômeno que está sendo investigado na literatura científica, em discussões de fóruns acadêmicos e encontros de profissionais da área de saúde mental. “Ainda não há uma resposta para esta problemática, mas alguns aspectos chamam a atenção”, expõe.

A ocorrência de diversas situações, ligadas não apenas ao suicídio, mas também a quadros depressivos e ansiosos ganham determinado contorno com as redes sociais.

O psicólogo menciona que muitos adolescentes e jovens têm apresentado nas redes forma de exposição pessoal de humor depressivo, muitas autorrevelações, formas de desabafar que podem indicar as aflições e frustrações que estão passando e os dilemas que estão marcando suas identidades. “Chama atenção a exposição associada a frustrações de muitos momentos de tristeza, o desenvolvimento de um quadro depressivo mórbido que leva ao isolamento, um sentimento de perda de valor de si. E essas pessoas não sabem muito bem ao que recorrer, por isso utilizam a rede social como uma forma de desabafo e até de anúncio”, observa Miguel.

Não é só a questão do suicídio que tem demarcado formas de sofrimento. A auto lesão, o sentimento de que não consegue lidar com as adversidades da vida, com os problemas que se passam nos ambientes de convivência e de que a pessoa não consegue sustentar o diálogo em sociedade. “A pessoa coloca isso no Facebook, mas não coloca alguém para conversar”, relata. “Muitas vezes quando um familiar tenta entrar em contato, a pessoa não se dispõe a falar pelo que está passando na intimidade e fica em reclusão”, complementa.

É neste ponto, de acordo com Miguel, que vem a demanda para o atendimento psicológico. A rede de apoio busca criar condições para que a pessoa possa expor seus sentimentos em um ambiente de cuidado, com a intervenção não apenas no sofrimento que ela está passando, mas também fazendo uma ponte de comunicação com familiares e pessoas com as quais tem um laço afetivo. “Quem está em estado de sofrimento e começa a ter comportamento auto lesivo, pensamento de morte, ideação suicida e a tentativa está em um sofrimento muito grande e não consegue direcionar isso sem suporte profissional. É muito difícil a pessoa conseguir lidar com toda a situação que está vivendo sem estar ligada a uma forma de acolhimento”, alerta o psicólogo.

 

Coordenador do Comitê de Saúde Mental e Enfrentamento à Violência, psicólogo João Paulo Brunelo Miguel: “Nessa hora tudo fica anulado: a família, os amigos, o trabalho. É um sentimento de sofrimento insuportável e é como se fosse uma reação do organismo a pessoa dar fim à própria vida paraacabar com o sofrimento. É um abismo” (Foto: Mirely Weirich)

 

JULGAMENTOS E PRECONCEITO

As doenças mentais, bem como o fato de alguém cometer o suicídio, são situações carregadas de preconceito, julgamentos e moralismo. “As pessoas têm a tendência em achar que é frescura, que é falta de Deus… E esses ‘achismos’, por mais sutis que possam ser externados, só pioravam a minha situação. Além de não ajudar em nada, a gente passa a sentir ainda mais fracassado, nos sentindo culpados por estar desse jeito”, expõe José.

O psicólogo comenta que acerca dos jovens há muito moralismo especialmente porque, culturalmente, eles ainda têm toda a vida pela frente e projetos a serem desenvolvidos. “Aparecem muitos questionamentos de incompreensão de por que a pessoa só quer ficar no quarto, não quer falar com ninguém, não quer estar em sociedade”, diz.

Quando alguém comete o suicídio também surgem interrogações na sociedade pelo fato de, muitas vezes, a pessoa ter tudo aquilo que é considerado sinônimo de sucesso e identificado como o melhor da vida.

O psicólogo afirma que hoje existe uma cultura de identidade nas redes sociais que mostra uma performance e não a realidade. “Se a pessoa está realizando vários feitos, tem muitas conquistas pessoais, familiares, profissionais e expõe tudo isso como uma maneira de reforço a essas conquistas, os outros se miram em ideais”, explana. “O problema está no fato de esses ideais representados nas redes não significarem, necessariamente, uma realização de experiência na intimidade. A pessoa está bem em suas fotos e no que posta, mas na intimidade está passando dilemas, impasses e frustrações que não são anunciadas ou partilhadas”, salienta.

Miguel alerta que por hoje as pessoas se pautarem nas imagens artificiais de si mesmas, é difícil compreender por que na intimidade elas têm dúvidas, frustrações e carências.

Ao mesmo tempo que há muita expressão e possibilidade de comunicação nas redes, coloca-se uma rota de colisão entre as condições de expressão com as condições de compreensão dos fenômenos sociais. “Do que adianta as pessoas se expressarem em um clima cultural de indiferença?”, questiona o profissional. “Várias pessoas expõem depoimentos de sofrimento e não tem um lugar de acolhimento e de cuidado. É como se ficasse uma mensagem ao vento”, destaca. “Nossas características culturais de que o lugar do outro não tem tanto sentido fazem ver o suicídio e o transtorno mental como um sofrimento que não deve ser dito e lidado, muitas vezes fazendo com que as pessoas que têm um sofrimento grave também se recusem a fazer um tratamento”, complementa Miguel.

 

REDE DE ATENDIMENTO

Ao mesmo tempo em que quem tem depressão passa pelo preconceito, de outro lado ainda existe o apoio e compreensão. “Minha falecida esposa percebeu os sinais da minha depressão logo que a minha empresa faliu e me encorajou a procurar ajuda. Se não fosse essa ajuda seria muito mais difícil sair dessa situação. Acredito que tenho depressão desde 2003, com intervalos de altos e baixas da doença. Desde de 2012 tomo remédios para depressão, com intervalos de maiores e menores doses e períodos que não faço uso de psicotrópicos. Hoje não faço uso de medicamentos, somente terapia, que ajuda muito a superar os meus fantasmas e minhas inquietações”, compartilha José.

A rede de atendimento tem pontos adequados para o acolhimento de pessoas que sofrem de transtornos mentais ou que estão em risco de cometer suicídio.

O coordenador do Comitê de Saúde Mental e Enfrentamento à Violência orienta que o primeiro ponto de atendimento são as Estratégias Saúde da Família (ESF), localizadas nos bairros e distritos rondonenses, que contam com uma equipe de profissionais responsáveis por fazer a articulação na rede de saúde. “Contamos também com o Centro Integrado de Saúde (CIS), antiga Unidade de Saúde 24 Horas, onde funcionam duas ESF e o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf), equipe multiprofissional que assessora as duas estratégias. Este é um ponto de acolhimento em que é possível ter atendimento psicológico, ser feita uma triagem e uma escuta inicial da pessoa que está em risco”, informa Miguel.

O Centro de Atenção Psicossocial (Caps) é outro ponto da rede, que trabalha com pacientes com transtornos mentais severos ou persistentes, bem como com dependências químicas de álcool e outras drogas. “Como as ideações e tentativas de suicídio são situações de alto risco, também fazemos esse acolhimento. Geralmente esses comportamentos vêm de pessoas com uma depressão maior, transtorno de ansiedade generalizada que pode levar a ataques de pânico e que acabam associados à ideação do suicídio”, comenta.

Por fim, há a Unidade de Pronto Atendimento (UPA), que deve ser buscada quando a pessoa está em alto risco. “Se ela está expondo que vai se matar de determinada maneira, em determinado horário, que quando a família sair ela vai cometer o ato, quando a pessoa está irresoluta é uma situação de emergência e ela precisa ser encaminhada à UPA”, orienta o psicólogo. “Este é um ponto da rede com atendimento 24 horas e as tentativas de suicídio geralmente ocorrem nas madrugadas e fins de semana, associado ao uso de substâncias depressoras como álcool, maconha e cocaína. Pessoas que têm disposição para o transtorno bipolar, que têm muita impulsividade ou quando há agravantes com uso de substâncias depressoras que proporcionam momentos de euforia, em que ficam descontroladas, disruptivas e, depois, passam por um episódio depressivo grave, até pela dinâmica da substância no organismo, são situações de risco graves em que é preciso encaminhar à UPA”, acrescenta.

 

APOIO AOS SOBREVIVENTES

É imprescindível que os olhos não sejam fechados para aqueles que sobreviveram ao suicídio: familiares, amigos, parceiros. “Quando uma pessoa comete suicídio, isso afeta todos aqueles que com ela tinham vínculo, não só a família. O ato remexe as referências de várias pessoas”, observa Miguel.

A chamada posvenção é um trabalho de cuidado com essas pessoas, uma maneira de abordar o suicídio de forma qualificada, cuidadosa, respeitosa e que gere uma reflexão para o cuidado com quem sobreviveu. “O luto é um sentimento que não pode ser evitado. Ele precisa ser lidado e aceito. Por isso buscamos elaborar formas de retomada do cuidado, de reconstruir o laço entre as pessoas e principalmente reassumir um compromisso enquanto rede de atendimento da saúde”, explica o psicólogo.

A busca em dar um significado à vida que segue adiante, de compreensão da pessoa que faleceu e sua dignidade são essenciais. “Ela cometeu o suicídio em um ato de desespero e desamparo, então não é justo ver essa pessoa de maneira negativa, com uma culpabilização. Na verdade o que fica é uma demanda de compreensão para refletir sobre o que dá significado às nossas vidas e o que nos mantém vivos”, expressa.

 

VALORIZAÇÃO À VIDA

O psicólogo enaltece que hoje existe uma necessidade da sociedade, das políticas públicas, equipamentos de saúde, das redes escolares e serviço social em executar projetos que deem visibilidade a boas práticas de convivência, a cultura de paz, ao incentivo de aproximação de vínculos familiares e a momentos de lazer e de cultura. “É preciso incentivar projetos que desenvolvam expressão, que tenham o propósito de aprimorar as formas de comunicação, desenvolvendo habilidades sociais e um comportamento pró-social e pró-ativo diante dos problemas”, evidencia o profissional.

Ele reforça que é preciso desenvolver na comunidade boas práticas de convivência que incluam principalmente as formas de dialogar e de abordar de forma qualificada os problemas sociais, bem como o desenvolvimento de projetos que deem visibilidade aos aspectos positivos da vida, que incentivem sentimentos de entusiasmo no que as pessoas vão fazer na escola, no trabalho, com sua família e na comunidade. “Quando pensamos em prevenir o suicídio, precisamos pensar em formas de melhorar a nossa vida em sociedade”, ressalta Miguel.

Hoje com 40 anos, José diz que gostaria de responder com um grande sim que superou a depressão. “Mas acho que ela é cíclica e pode se manifestar a qualquer momento”, expõe.

Ele busca compartilhar alguns conselhos para aqueles que convivem com familiares ou amigos que sofrem do mesmo problema. “A depressão pouco a pouco leva a pessoa a se afastar daqueles que mais ama, justamente para não ser julgada ou mal interpretada. É justamente por isso que deve-se evitar julgamentos, críticas e fazer comparações como ‘não é só você que tem problemas’, ‘há pessoas que estão bem pior que você’. Esses atos só pioram e afastam o doente do convívio social. Lembre-se que a pessoa não está assim porque quer! Dê apoio aos pequenos gestos e superações, elogie, seja paciente e, sobretudo, busque conhecimento sobre a doença. Quem sofre de depressão pode e deve ser feliz. Por todo o caos que já tive na vida, me considero feliz e motivado a seguir adiante. Todos podemos e superar este grande mal”, finaliza.

 

* Nome fictício usado para preservar a fonte, que aceitou contar experiências vividas devido à depressão como forma de auxiliar outras pessoas.

 

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