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Marechal

O vai e vem dos nativos

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Nos semáforos, acampados no terminal rodoviário e nas principais ruas e avenidas da cidade, sempre oferecendo cestos multicoloridos feitos de palha.  

De tempos em tempos, grupos de famílias indígenas desembarcam em Marechal Cândido Rondon para vender suas peças de artesanato e manter sua cultura e seu sustento, porém, assim como em outras cidades da região, esses povos vivem como andarilhos: sem moradia fixa e acesso a condições básicas de saneamento, moradia, educação e saúde. Em uma completa situação de vulnerabilidade social e expostos a diversos riscos.

Enquanto as matriarcas trabalham na fabricação dos cestos e filtros dos sonhos, as crianças e adolescentes fazem a venda das peças de artesanato produzidas. Quando não alcançam o êxito na venda, os pequenos são designados para pedir por dinheiro na janela dos carros, bem como alimento em residências e até mesmo em estabelecimentos comerciais.

Segundo o último levantamento da Fundação Nacional de Saúde Indígena (Funasa), realizado em 2010, o Paraná conta com uma população de índios estimada em 13 mil pessoas, divididas entre as etnias kaingang (75,3%), guarani (24,6%) e xetá (0,4%). Entre os kaingangues, grupo indígena mais populoso do Estado, é bastante comum que famílias inteiras se desloquem de suas aldeias de origem para os centros urbanos – especialmente durante o período de férias escolares e nos feriados comemorativos. “Muito mais que um meio de subsistência, esse movimento representa uma importante etapa do processo de aprendizado das crianças kaingang, que permite a sua inserção nas especificidades culturais de seu povo”, explica a procuradora regional dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal no Paraná (MPF/PR), Eloisa Helena Machado.

Um desses exemplos é uma família da aldeia kaingang que vive em Mangueirinha e está em Marechal Rondon pela primeira vez. A mãe, que leva consigo quatro filhos, perdeu o marido há cerca de dois meses e tira da venda dos artesanatos indígenas o único sustento da família. “A Funai não ajuda nós e também ainda não recebi pensão do meu marido porque ele não tem documento, o único dinheiro é do artesanato indígena”, conta a índia.

A cada mês, a família migra de ônibus para uma cidade diferente para manter a comercialização. Segundo ela, a venda dos cestos, que custam R$ 30, e filtros dos sonhos, vendidos a R$ 15 cada um, servem para comprar comida. “Algumas pessoas ajudam com roupa, dão comida e também dinheiro. Mas quando está parando de vender, não tem movimento, mudamos de cidade e quando acaba todo o artesanato voltamos para a aldeia. É o único jeito que temos para viver”, diz.

 

Crianças em vulnerabilidade

Apesar de ser uma cena comum no município, já que a presença indígena na comunidade rondonense é constante mesmo com os grupos se fixando na cidade por curtos períodos, quando a população se depara com crianças e adolescentes nessas situações que, para povos não-indígenas, caracterizam a violação de direitos por conta da vulnerabilidade na qual se encontram, questiona-se sobre o motivo pelo qual os órgãos que asseguram o direito de crianças e adolescentes não intervêm. A procuradora do MPF/PR explica que, no Brasil, inúmeros diplomas legislativos garantem o respeito aos costumes e tradições dos povos indígenas, como o artigo 231 da Constituição Federal de 1988, que reconhece aos índios a sua organização social, costumes, crenças e tradições; o artigo 8º da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que impõe ao Estado o dever de considerar os costumes ou o direito consuetudinário dos povos indígenas na aplicação da legislação nacional; e o artigo 6º do Estatuto do Índio (lei nº 6.001/1973), que exige o respeito aos usos, costumes e tradições das comunidades indígenas. “Dentro desse panorama, a aplicação dos dispositivos protetivos encartados pela lei nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) aos infantes indígenas deve ser cercada de cautelas, de modo a garantir o efetivo respeito às peculiaridades socioculturais das comunidades indígenas”, esclarece. “Esse, aliás, é o posicionamento consolidado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), órgão vinculado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, através da Resolução nº 91, de 23 de junho de 2003”, complementa.

Eloisa enfatiza que o ordenamento jurídico brasileiro não impede a aplicação do ECA às crianças e adolescentes indígenas e nem veda a atuação dos conselheiros tutelares, entretanto, o que se exige do Poder Público e de suas instituições é a adoção de uma visão diferenciada sobre a situação social desses infantes, amparada no respeito à alteridade do povo indígena. Isso significa coadunar os princípios protetivos encartados no artigo 100, caput e parágrafo único do ECA, aos costumes e tradições indígenas. “A eventual atuação dos órgãos públicos, especialmente daqueles voltados à tutela dos direitos da criança e do adolescente, deve ser sempre orientada por uma perspectiva protetiva, amparada no diálogo com as famílias e as lideranças indígenas, de modo a evitar uma invasão indevida no espectro de autodeterminação dos povos indígenas”, aponta a procuradora.

 

Mãos atadas

A Funai, citada pela índia kaingang, é a Fundação Nacional do Índio, órgão oficial do Estado brasileiro vinculado ao Ministério da Justiça, que coordena e executa a política indigenista. Sua missão é proteger e promover os direitos dos povos indígenas, garantindo acesso diferenciado aos direitos sociais e de cidadania aos índios por meio do monitoramento das políticas voltadas à seguridade social e educação escolar indígena.

Quando saem das áreas que têm assistência do órgão, no entanto, os grupos ficam à mercê de diversos problemas sociais, sem acesso à saúde, moradia, educação, saneamento, segurança e até mesmo alimentação adequada. “Enquanto Secretaria de Assistência Social, realizamos abordagem social por meio do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) em conjunto com o Conselho Tutelar, quando há crianças e adolescentes envolvidos, orientando-os quanto aos cuidados que devem ser observados enquanto permanecem aqui”, expõe a secretária de Assistência Social, Josiane Laborde Rauber.

A gestora da pasta salienta que a presença desses indígenas a céu aberto, dormindo em redes ou em cobertores estendidos ao chão, acaba por sensibilizar algumas pessoas, enquanto outras entendem ser uma questão cultural. “Há aqueles que discriminam, achando que o serviço público deve tirá-los do local, acomodando-os em lugares mais protegidos. Já falamos, em outras oportunidades, com líderes que acompanham os grupos, e sabemos que eles são supervisionados pelos seus caciques, que permitem que eles saiam por um período determinado para vender seus artesanatos e dessa forma melhorar as condições de vida do seu grupo”, menciona.

Josiane diz que os indígenas que frequentemente visitam Marechal Rondon são da região de Laranjeiras do Sul, permanecendo no município por aproximadamente 15 dias.

O mais comum é que eles venham nas férias escolares, quando trazem junto seus filhos, e muitos índios colocam os pequenos nos semáforos ou andando pelas ruas com a finalidade de auxiliar na venda de artesanato, expondo involuntariamente as crianças a situações de risco. “Os rondonenses são orientados a não dar dinheiro quando pedido na rua, especialmente em se tratando de crianças. Se tiver que comprar artesanato, que comprem apenas de adultos, pois assim estaremos prevenindo a mendicância e a exploração do trabalho infantil. Além disso, evitem fazer doações de utensílios de difícil transporte, pois, como não fazem parte dos seus costumes, acabam sendo abandonados no local quando retornam às suas aldeias”, orienta a secretária.

A presidente do Conselho Tutelar, Ilse Grosklass, ressalta que o órgão tem ciência do problema que envolve os infantes indígenas que passam pelo município, mas que, infelizmente, estão de “mãos atadas”. “Os indígenas possuem uma legislação própria, e a Funai é responsável por proteger e promover os direitos desses povos, contudo, ela deixa a desejar. O órgão alega que tem a legislação específica, mas se algum dia acontecer alguma coisa com uma criança indígena fora da área que tem assistência da Funai, quem será responsabilizado?”, questiona a conselheira tutelar. 

O Conselho Tutelar rondonense já contatou o diretório da Funai da região de Laranjeiras do Sul com o objetivo de solucionar o problema, todavia, a resposta foi que os indígenas são “um problema nosso (da Funai)”. “Eles destacaram que os índios estão em Marechal Rondon momentaneamente para comercializar os artesanatos que produzem e que inclusive são autorizados pelo órgão para sair das aldeias”, expõe.

Para Ilse, a Funai deveria ter uma visão diferenciada dessas situações para tentar mudar a realidade nos municípios que recebem indígenas com frequência, porém não possuem assistência do órgão.

 

 

Intolerância

De acordo com a pesquisadora da História indígena e coordenadora do Laboratório de Pesquisa e Estudos de Gênero (Lapeg) da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), doutora Carla Nacke Conradi, no Brasil, a compreensão dos grupos indígenas pela sociedade nacional se dá em um quadro de desinformação marcado pelo preconceito e discriminação, que resulta em uma representação social da imagem indígena como sujeitos “atrasados”, “ladrões de terras” ou “alcoólatras”. Ou seja, a intolerância que por vezes é sentida em Marechal Rondon com os grupos indígenas que passam aqui é algo que acontece também em âmbito nacional. “Ouve-se muito que os sujeitos que encontramos na atualidade não são mais indígenas, pois teriam perdido a cultura indígena e os ‘indígenas verdadeiros’ são os que estão no passado, os de tanga, vivendo em ocas e usando arco e flechas”, pontua.

Na verdade, expõe a pesquisadora, estudos sobre a cultura têm evidenciado como ela é dinâmica e se reelabora constantemente, como forma de sobrevivência e manutenção. “Portanto, esses sujeitos que encontramos vendendo seus artesanatos nas ruas ou militando politicamente por seus direitos são indígenas guarani, terena, kaigang e muitas outras etnias. Nunca é demais insistir no fato de que a humanidade é composta por uma rica variedade de grupos humanos, e os indígenas fazem parte deste grupo. Não cabe a nós, sociedade rondonense, aceitar ou receber os indígenas com preconceitos e discriminação, pois são atitudes que acabam muitas vezes engendrando hostilidade, gerando conflitos e violências”, ressalta Carla.

Ela afirma que, ao contrário do que muitos pensam, estar em uma reserva indígena não é estar “confinado”, preso pelo Estado, mas permitir que os índios tenham um espaço para a manutenção de sua forma de viver. “Na maioria das vezes os grupos indígenas saem das reservas indígenas e vão para as cidades por questões culturais, portanto, tem relação com suas pautas culturais e não para mendigar, como já foi dito por munícipes em  redes sociais”, enfatiza. “Sair para as cidades é algo passageiro, tem um sentido muitas vezes de vender artesanato, conversar com o Poder Público, caminhar pelo território. Ora, eles são seres humanos e não animais para ficarem presos, como em um zoológico. Quando se quer ver índios, os colégios levam os alunos nas reservas e a sociedade nacional diz: ‘fiquem lá, não sujem a minha cidade, esteticamente não quero os ver por ai!’”, critica a pesquisadora.

Ela aponta que os grupos vão embora das cidades não porque foram expulsos, mas porque entendem que este espaço, essa terra, não é deles e não têm uma relação com ela, uma posse imemorial. “Um grupo indígena ocupa e reivindica uma terra quando ele tiver uma relação com essa terra, um sentimento de posse com os antepassados, de pertencimento, de vivência, e há uma lei para isso”, diz.

 

Demarcação

A política de demarcação de terras indígenas, que por vezes gera conflitos e tensões entre indígenas e fazendeiros que têm suas terras desapropriadas pelo Ministério da Justiça para defini-las como terra indígena, na visão da pesquisadora, não faz com que os índios sejam rejeitados ou excluídos pela população local. “O que faz com que isso possa estar acontecendo é a interpretação, o senso comum, que a comunidade local pode estar tendo disto. O Brasil tem um problema imenso fundiário, ele é do pequeno agricultor, do indígena, do quilombola, dos sem terras, de inúmeros sujeitos que têm direito a terra”, assinala.

A interpretação que os grupos indígenas são “sujeitos usurpadores de terras”, frisa Carla, é errônea e preconceituosa. Todavia, ela existe porque ao passo que as terras indígenas foram usurpadas e se contava com a extinção deles no futuro, cada vez mais eles têm se organizado por políticas indígenas em prol de seus direitos, no que diz respeito a uma vida culturalmente distinta e por terras para seus territórios indígenas. “Sujeitos que eram entendidos como presos ao passado, hoje são sujeitos engajados na luta e têm conquistado a visibilidade e o desconhecimento destas questões por parte da sociedade nacional. Isso faz com que as pessoas, infelizmente, achem que são sujeitos que só querem acumular terras e não sabem trabalhar nelas”, conclui a doutora.

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