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Marechal

Perigosos e impunes?

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Reprodução/Internet

 

Em 20 dias, sete passagens pela Polícia Militar. Na maioria delas, por furto de bicicletas. E quem fez a denúncia à autoridade policial, na maior parte das vezes, foi um membro da família. Além de chamar a atenção pela recorrência e pelo tipo do crime cometido em um intervalo de tempo tão curto, há outro motivo para o espanto de quem tomou conhecimento do fato nas últimas semanas: o autor dos furtos era um adolescente de apenas 13 anos.

Por tramitar em segredo de Justiça, os casos envolvendo adolescentes em conflito com a lei causam revolta na comunidade. Aos olhos das vítimas, uma pessoa que andou fora da lei deve ser presa e punida por seus atos, independente de sua idade. Às vezes a sociedade não compreende muito bem que não tem por que punir mais o adolescente do que o adulto. Se um adulto furtar uma bicicleta, ele não vai ser preso. Caso ele seja processado criminalmente por furto, vai pagar cesta básica, expõe a juíza da Vara da Infância e Juventude da comarca rondonense, Berenice Ferreira Silveira Nassar. É incompreensível essa cobrança da sociedade em relação ao adolescente, para que ele seja punido, se ela (sociedade) não faz a mesma cobrança do adulto que furta uma bicicleta, reafirma.

Apesar de o município não contar com um Centro de Socioeducação (Cense), todos os adolescentes envolvidos em atos infracionais percorrem o mesmo caminho perante as autoridades policiais, o Ministério Público e a Justiça.

 

Sentimento de impunidade

Em casos de ocorrências envolvendo adolescentes, a Polícia Militar não faz a prisão, mas, sim, a apreensão do envolvido. A Polícia Militar tem certos cuidados que devem ser tomados quando é feita a apreensão de um adolescente, pois há uma série de medidas que devem ser seguidas, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), começando desde os termos: o adolescente não comete um crime, ele comete um ato infracional; e ele não é preso, é apreendido e ele é tratado de forma diferente do que um preso adulto pela proteção que ele tem por meio do ECA, explica o aspirante a oficial Gustavo Henrique Costa Vaz, comandante do Pelotão de Guaíra e que atualmente responde administrativamente pela 2ª Companhia da PM de Marechal Rondon.

Em caso de flagrante, por exemplo, quando o policial visualizou o adolescente cometendo o ato infracional ou nos instantes posteriores ao ato e ainda há testemunha – o que também é considerado um flagrante -, ele é apreendido junto aos ilícitos (as provas do crime) e encaminhado à Polícia Civil. O Conselho Tutelar também é comunicado sobre a situação para fazer o contato com os pais ou responsáveis pelo adolescente. Após a confecção do boletim de ocorrência o adolescente é encaminhado à Polícia Civil, que dá andamento ao caso. Somente quando o caso chega ao Ministério Público e posteriormente ao Judiciário que é aplicada alguma sanção ou medida corretiva, afirma. Não é responsabilidade da PM tomar medidas corretivas, ou seja, a atuação da Polícia Militar é fazer o atendimento à ocorrência, apreender o jovem junto aos ilícitos e encaminhá-lo até a delegacia, esclarece Vaz.

Caso o adolescente não esteja envolvido em atos que o ECA prevê possibilidade de apreensão, é designada uma data para a oitiva informal no Ministério Público. Contudo, conforme explica a promotora de Justiça Roberta de Almeida Said Coimbra, se o ato infracional cometido for com violência ou grave ameaça à vítima, com reiteração de condutas, infração grave ou descumprimento de uma sanção anterior – que permitem a apreensão do adolescente -,

o delegado comunica o MP para realização da oitiva informal de imediato. Se for realmente um caso grave, de acordo com os parâmetros do ECA, já pedimos a internação provisória e apresentamos a representação ao juiz, diz.

A oitiva informal é um procedimento previsto pelo ECA e que garante contraditório para a defesa do adolescente. Assim como nos casos de adultos, o jovem também tem direito ao silêncio para não produzir provas contra si. Se não houver a possibilidade de ouvir o adolescente e já tiver a prova da autoria da materialidade do fato, podemos prosseguir oferecendo a remissão, como se fosse um perdão, em que fazemos um acordo que geralmente é acompanhado de medidas socioeducativas e protetivas se o adolescente não teve nenhuma passagem anterior, explica a promotora.

Se o jovem estiver envolvido em um caso mais grave, é realizada a representação, que é a peça inaugural, como se fosse a denúncia no caso do crime, pedindo a internação provisória do adolescente. Quando o caso chega ao Judiciário é realizada uma audiência de apresentação, na qual o juiz mantém o primeiro contato com o adolescente. Nesta audiência os responsáveis legais vão apresentá-lo em juízo, junto ao seu defensor e o Ministério Público. Neste momento converso com os pais ou o curador, tento colher informações sobre a criação do adolescente, se ele teve uma vida escolar regular, como é esse jovem no ambiente familiar, sobre coisas da sua vida e o fato em si que o trouxe até ali. Já o adolescente vai descrever o fato e procuramos situar tempo, lugar e forma de execução do ato, além da motivação, esclarece Berenice.

Em seguida, acontece a apresentação da defesa e indicação das testemunhas que devem ser ouvidas. Além disso, todos os adolescentes passam por avaliação psicossocial junto com seus familiares, e é por meio dela que será definida a medida socioeducativa adequada ao caso, em regime aberto ou fechado. Muitas vezes, mesmo em casos de repetição de atos infracionais, a motivação não é a má índole ou a fragilidade da estrutura familiar e da sociedade, mas, sim, porque ele está sendo vítima de uso de entorpecentes, menciona.

De acordo com a juíza, casos de furtos reiterados como aquele relatado no início da reportagem não são o sustento do jovem, sua forma de viver. Normalmente, ele tem uma família que proporciona a satisfação das necessidades básicas, mas se tornou dependente químico e precisa manter esse vício. E o traficante cada vez exige mais para fornecer pequenas quantias, ele troca os bens furtados para pagar dívidas ou para se manter neste meio, exemplifica.  Nesses casos, quando a medida socioeducativa não é compatível com o ato infracional aplicado, é verificada a causa desse desvio de comportamento e, por não ser algo do qual o jovem precise ser privado do convívio social, ele é encaminhado para um tratamento adequado.

 

Punições

Berenice declara que o não internamento de adolescentes em Centros de Socioeducação, em determinados casos, não se dá pela falta de vagas, mas, sim, porque o ato infracional cometido por ele, se for apenado, será uma medida socioeducativa de prestação de serviço à comunidade, de advertência ou liberdade assistida, que são cumpridas em regime aberto. Muitas vezes para um adolescente essa medida é mais pesada do que para um adulto pagar cesta básica. Ele terá que comparecer por três meses em um dia pré-determinado e ficar das 08 às 12 horas prestando serviço à comunidade. Sem dúvida, ele vai chegar aqui e pedir se não pode cumprir tudo em uma semana e a resposta será não, porque a medida tem o efeito socioeducativo. É para você sentir, para ter o pensamento de que se não tivesse feito isso não teria que estar aqui toda segunda-feira, por exemplo, pontua.

Apesar de também considerar graves os casos de recorrência, onde o jovem apresenta falta de respeito por valores materiais próprios e do outro, a juíza enaltece que o Cense é um local para a readaptação de adolescentes que cometem atos graves. Ele não ficar internado não significa que não vá passar por todo um procedimento. Será aplicada uma medida para ele, pois a finalidade do ECA é pedagógica e não punitiva, para que ele não volte a incidir novamente na prática de um ato infracional e para evitar que quando faça 18 anos vá preso, complementa Roberta.

A promotora enfatiza que, além das medidas socioeducativas, também há as medidas protetivas que podem ser aplicadas, como a matrícula e frequência obrigatória em escola, que muitos adolescentes não querem. Eles preferem prestar serviço a manter a frequência e o rendimento escolar, diz.

 

Resultados positivos

Apesar do aumento nos casos de furtos cometidos por adolescentes no comparativo entre 2015 e 2016, Vaz destaca que é perceptível uma redução no número de ocorrências em que adolescentes estão envolvidos. Em 2015, foram 117 e, neste ano, são 95 casos no mesmo período. Acredito que essa redução se dá pelo trabalho global e apoio mútuo entre as instituições, desde o Conselho Tutelar, Polícia Militar, Polícia Civil, Ministério Público, Judiciário e a própria escola e a família. Creio que essa redução no índice de atos infracionais tem relação direta com o melhor acompanhamento dessas instituições que, em conjunto, conseguem uma aproximação maior ao jovem, um diálogo mais aberto, para mostrar que realmente o crime não compensa, destaca.

Para Berenice, apesar de o município possuir casos de ressocialização positivos, de adolescentes que cumpriram medidas tanto em regime fechado quanto aberto, o trabalho das instituições, bem como da sociedade para combater a evasão escolar e integrar esses adolescentes no mercado de trabalho deve ser ininterrupto. A maioria dos adolescentes envolvidos nesses atos parou de estudar e atua em atividades laborais que não são adequadas à sua idade. A maioria está na construção civil com 13 ou 14 anos e com 30 será inválido pelo peso da atividade, menciona. Acredito que o incentivo ao adolescente permanecer na escola e em atividade laboral adequada ao seu desenvolvimento seria a junção para baixar ainda mais esses índices da criminalidade juvenil, conclui a magistrada.

 

Realidade

Para os adolescentes envolvidos em crimes graves, o destino é a internação no Centro de Socioeducação, em período que pode variar de seis meses a três anos, dependendo da decisão judicial.

De acordo com o diretor do Cense de Toledo, Sandro de Moraes, a partir dos 12 anos qualquer adolescente pode cumprir medida de internação, seja sentenciado pelo juiz ou em caráter provisório de até 45 dias até que o ato infracional seja apurado. Eles podem permanecer internados até os 21 anos, mas devem compulsoriamente ser colocados em liberdade após este período, informa.

Apesar de não ter a mesma conotação de uma cadeia pública, no Cense os adolescentes cumprem medidas de caráter punitivo, pois estão privados de liberdade em um espaço cerceado de grades, monitorado e com situações de revista dos internos e familiares. A medida socioeducativa tem outro viés, de trabalhar a questão dentro da unidade da escolarização. Hoje há investimento por parte do Estado em profissionalização com cursos dentro das unidades, então esse adolescente tem uma rotina cercada de normas e procedimentos norteados pelo regimento interno, desde acordar até o deitar-se ao fim do dia há um monitoramento constante, ressalta Moraes.

Apesar das normas, o objetivo principal é trabalhar a questão pedagógica da medida, a responsabilização do adolescente pelo ato infracional, além de buscar uma reflexão e apontar novos horizontes para o jovem não reincidir no ato infracional. Não é como no sistema de cadeia pública, em que a pessoa é recolhida e até ser julgada de certa maneira fica no ócio. Aqui, assim que o jovem chega na unidade passa por uma avaliação com a equipe multidisciplinar composta por assistente social, psicólogo e pedagogo para uma primeira intervenção com o garoto e sua família, a fim de verificar de que maneira será conduzido o caso, destaca.

Embora a estrutura do Cense de Toledo seja considerada inadequada pelos parâmetros do próprio Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), estando anexo à 20ª Subdivisão Policial, o local atende 26 jovens – a capacidade máxima é 28. Contudo, já há um projeto licitado para a construção de uma nova unidade para atender 60 pessoas, que vai permitir a expansão do atendimento para outros municípios. Hoje, 90% da nossa demanda é de Toledo e o restante de outros municípios do Oeste, diz.

Moraes enfatiza que, na maioria das vezes, o jovem chega à unidade sem limites básicos de respeito ao próximo, por isso avalia que a medida surte efeito naqueles que estão cumprindo o internamento ou já foram postos em liberdade. O nosso trabalho tem resultados, mas fala-se tanto em ressocializar esses jovens para devolver à sociedade e se esquece de analisar como está essa sociedade e como ela recebe o jovem que sai daqui. A reflexão vai além da efetividade do nosso trabalho para como está a sociedade em sua totalidade, complementa.

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