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Marechal

Um Gutsherr em Rondon

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Por Heinz Schmidt

 

Pessoas que o conheceram na Marechal Cândido Rondon dos anos 1960/70 o definem como um senhor de aparência distinta, culto e muito educado, que levava uma existência discreta ao lado da esposa 25 anos mais jovem que ele.

 O personagem desta história tem nome com resquícios de nobreza, cuja ancestralidade remonta ao século XIII: Ernst August von Blücher, filho de Ernst Karl Albert Lucian von Blücher, oficial da Cavalaria Territorial do Grão-Ducado de Mecklenburg, e de Auguste Eleonore von Böhl.

 Os von Blücher são um clã com diversas ramificações que marcaram presença na história de territórios teutos desde a Idade Média – principalmente como senhores feudais, bispos, funcionários públicos graduados e militares. O mais saliente deles talvez tenha sido o marechal-de-campo prussiano Gebhard Leberecht von Blücher, um dos três comandantes que derrotaram Napoleão em Waterloo.

 Foram os desdobramentos da Segunda Guerra Mundial e os ventos do destino que – da mesma forma que tantos outros – trouxeram o imigrante alemão Ernst August von Blücher para o incipiente núcleo de colonização General Rondon na primeira metade dos anos 1950.

Nascido em Ludwigslust (no atual Estado alemão de Mecklenburg-Vorpommern) a 06 de julho de 1886, von Blücher já contabilizava mais de 60 anos de idade e deixava irremediavelmente para trás toda uma existência como grão-senhor de três latifúndios no Nordeste do antigo Reich alemão. O imigrante havia sido um Gutsherr – membro da elite rural com título nobiliárquico ou não que durante séculos foi o esteio do aguerrido Reino da Prússia. Mais do que um simples latifundiário agricolino, o Gutsherr – do qual deriva o Junker prussiano – tinha desde a Idade Média poderes e deveres que iam além da mera atividade rural no feudo sob seu controle. Essa situação senhorial perdurou juridicamente até 1930.

 Ernst August von Blücher foi proprietário de três Gut em Mecklenburg-Vorpommern que somavam, estima-se, mais de dois mil hectares. Para padrões europeus, uma área considerável. Por herança, tornou-se sucessivamente senhor dos Gut Kuppentin, Glave e Cramon (perto de Stettin), que ele e a esposa Else administravam. O casal teve duas filhas: Gudrun, nascida em 1922, e Irmingard, em 1924.

 Erich Erdstein, um controvertido austríaco que se autointitulava “caçador de nazistas”, e munido de uma carteirinha de investigador da polícia paranaense, colocou a pacata Marechal Cândido Rondon na mídia em 1968/69 como embrião de um hipotético IV Reich hitlerista. Viu no refinado von Blücher um perigoso adepto da cruz gamada. A rigor, não se tem informações comprovadas sobre as concepções políticas do imigrante; tampouco se sabe se exerceu algum papel de maior ou menor relevância no regime de Hitler.

 Na primeira metade dos anos 1940, em plena guerra, von Blücher aparentemente estava mais preocupado com suas propriedades. Quando um incêndio destruiu a velha estrebaria e o galpão em Cramon, ele mandou reconstruir tudo. As novas instalações ficaram prontas em 1944.

Maio de 1945 foi um divisor de águas na vida da família von Blücher. Derrotada pelos Aliados, a Alemanha foi dividida em zonas de ocupação. Todo o Leste do antigo Reich ficou sob controle do Exército soviético, dando origem em 1949 à República Democrática Alemã, de feição stalinista. Nos territórios onde tremulava a bandeira vermelha, impôs-se o lema “a terra dos Junker para os camponeses”, seguido de uma implacável reforma agrária.

 O Gutsherr Ernst August von Blücher foi expropriado. Perdeu tudo o que tinha, sem direito à indenização. As áreas foram parceladas e entregues inicialmente a lavradores minifundiários; mais tarde, quando da coletivização forçada da agricultura, transformaram-se em fazendas de produção coletiva no estilo dos colcozes soviéticos.

Ernst August e a esposa Else se separaram. A filha mais velha, Gudrun, acompanhou o pai e faleceu de difteria em julho de 1945. Irmingard ficou com a mãe e casou depois com um americano, Robert McLees.

Refugiado em Heilbronn, no Sudoeste da Alemanha, o ex-latifundiário decidiu emigrar para a América do Sul no início dos anos 1950. Seu primeiro destino foi Cochabamba, na Bolívia, de onde veio para Corumbá (MS) no dia 21 de setembro de 1951 com um passaporte emitido pela Alta Comissão Aliada para a Alemanha. Em 1953, presume-se, já estava no Oeste paranaense, porque em maio daquele ano chegava ao Porto de Santos (SP) Agnes Christine Möllers, natural de Ahaus (Westfalen), que seria a companheira de von Blücher no Brasil. Tinha 42 anos na época, e declarou à Imigração que era casada e iria residir em General Rondon.

Gut Glave, em Mecklenburg, uma das três propriedades que constituíam o patrimônio do Gutsherr von Blücher

Von Blücher e sua segunda esposa levaram uma existência tranquila durante mais de 20 anos. O jornalista Harto Viteck, titular de um ótimo site sobre história regional, recorda que o casal dedicava-se a atividades agrícolas em Esquina Guaíra, perto do atual aeroporto de Marechal Cândido Rondon. “Eram muito distintos. Pessoas educadíssimas”, diz. Arnold Lamb, auditor aposentado da Receita Federal, guardou a mesma impressão dos imigrantes. Eles eram clientes no armazém de seu pai e vinham à cidade para fazer compras a bordo de uma charrete com toldo.

O Gutsherr Ernst August von Blücher chegou perto de emplacar 90 anos. Faleceu em 27 de abril de 1976. Agnes faleceu um mês depois, em 25 de maio. A filha Irmingard esteve duas ou três vezes em Marechal Cândido Rondon. A primeira, em 1964, vinda da Califórnia (Estados Unidos) ou do Panamá, onde aparentemente residia com o marido; depois, em 1976/77, para tratar do espólio do pai. Consta que ainda vive, já nonagenária, nos Estados Unidos.

Túmulo do casal no cemitério de Marechal Cândido Rondon

 

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