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Giro solidário é crime?

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Uma prática que já ocorre há alguns meses em outras cidades do Brasil tornou-se popular nas últimas semanas em Marechal Candido Rondon. Chamada de giro solidário, ela é divulgada como “grupos de ajuda mútua”, nos quais os participantes fornecem uma quantia em dinheiro para os recrutadores e, depois, tornam-se os beneficiados pelo acúmulo das “doações” dos novos membros.

O giro solidário funciona no modelo de mandala, que necessita do recrutamento frequente de novos membros em grupos de WhatsApp. O convite é atraente e assegura que se o participante investir R$ 125, ele terá R$ 1 mil de retorno. Os participantes são divididos por cores em quatro níveis diferentes. O participante que chega no último nível é quem ganha o valor arrecadado e os outros devem recrutar novos membros para avançar de “cor”. O ciclo é organizado para que cada participante diferente receba o mesmo valor e ninguém seja prejudicado.

Entretanto, a prática do giro solidário vem gerando certa polêmica e dividindo opiniões entre a sua real finalidade. Enquanto uns alegam que o giro é um esquema de pirâmide financeira, outros afirmam ser algo benéfico, com o intuito apenas de promover uma ajuda mútua entre as pessoas.

Esta é a opinião da cabeleireira Clarice Marschner, de 37 anos, que está participando do giro solidário há cerca de duas semanas. Conforme a rondonense, ela e seu marido entraram no grupo na mesma semana, sendo que em três dias ela já havia recebido o retorno em dinheiro. “Meu marido recebeu dentro de quatro dias e foi algo muito bom para nós, inclusive para mim, que estava com dificuldades de pagar algumas contas”, conta, emendando: “Eu tenho comércio, mas o movimento está muito fraco e tinha contas atrasadas para serem quitadas. Assim, após uma colega me falar sobre o giro solidário, eu entrei e realmente consegui o dinheiro, paguei minhas contas e agora estou ajudando outras pessoas a ganharem também”, conta.

Após ganhar a primeira vez, Clarice diz que continuou doando para outros grupos. “Eu doei para mais três grupos e também comecei a ajudar na criação de grupos e links, inclusive deixando meu comércio em segundo plano e me dedicando inteiramente a isso”, revela, afirmando que em torno de 1,8 mil pessoas foram ajudadas por ela em apenas uma semana. “E de todas as pessoas que eu ajudei, a maioria conseguiu receber o dinheiro e retornou novamente para participar de outros grupos”, comenta.

Clarice tem cerca de 115 grupos, que ela mesma montou e distribuiu os links, arquivados em seu celular. Atualmente ela participa de aproximadamente 25 grupos, que são constantemente movimentados. “Eu e mais algumas pessoas criamos um grupo de ajuda mútua para auxiliar aqueles grupos que estão quase fechando, mas que, às vezes, precisam de mais uma ou duas pessoas para que isso aconteça”, comenta. “Houve situações em que as pessoas me procuravam durante a madrugada para que eu dividisse os grupos para elas”, acrescenta.

 

Repercussão

Nos últimos dias, notícias sobre o giro solidário repercutiram na mídia e estamparam as capas de muitos portais de notícias da cidade e da região, alertando para o fato do mesmo ser considerado um crime. Isso, conforme Clarice, trouxe medo e temor aos participantes. “Agora, por conta disso, alguns grupos estão parados. Além disso, várias pessoas vieram até mim pedindo se realmente era um crime e se elas poderiam ir presas. Recebi, inclusive, ameaças”, revela. 

No entanto, Clarice afirma que todos que participam do giro entram cientes do que é e o que precisa ser feito. “Na maioria das vezes eu não precisava ir até a pessoa, ela que vinha me procurar. E, a partir do momento que uma pessoa recebe, ela vê que é verdade e continua participando”, salienta.

A rondonense ainda acredita que está havendo essa repercussão pelo fato de ser uma novidade e que mostrou realmente funcionar. “Uma pessoa fez, viu que deu certo, divulgou e mais pessoas também começaram a participar. Eu não vejo o giro como uma oportunidade de ganhar dinheiro fácil, mas, sim, como uma forma de ajudar as pessoas”, opina.

De acordo com Clarice, quando ela entrou no giro pela primeira vez, a pessoa que a tinha convidado alertou que o grupo poderia levar de 15 a 20 dias para fechar. “Mas, como era novidade e as pessoas estavam participando, houve grupos que fecharam em apenas duas horas”, garante.

Outro ponto muito questionado é a possibilidade e até mesmo a facilidade com que golpes podem ser aplicados por meio do giro solidário. “Nos grupos em que eu participo e outros em que já participei não vi em nenhum momento a possibilidade de golpe”, menciona Clarice. “Em contrapartida, não é algo que pode ser generalizado, pois realmente há pessoas que estão criando grupos de valores menores e que podem estar pretendendo aproveitar a situação para praticar algum golpe”, declara.

Os grupos que Clarice participa têm como estipulado para ingressar no giro o valor de R$ 125, porém ela diz que já foi convidada para participar de outros grupos com valores menores, como R$ 25 e R$ 50, e até maiores, como R$ 250.

 

Para participantes, é lucro

Quem também participou e ainda participa do giro solidário é a rondonense Meri de Souza, de 31 anos. Apresentada ao giro por uma amiga, através do Facebook, ela entende que a ação não é ilegal e que apenas tem o intuito de ajudar as pessoas. “Eu entrei pelo fato de que eu e meu marido estamos desempregados, temos uma filha pequena e aluguel para pagar, e o giro nos ajudou muito”, destaca.

Ela conta que quando entrou no grupo, permaneceu por um tempo apenas observando e quando teve a certeza de que se tratava de algo confiável, tanto ela quanto seu marido resolveram investir. Em apenas dois dias o nome de Meri já estava no centro da mandala e era a sua vez de receber o dinheiro. “Após isso, eu continuei investindo e outros familiares também começaram a investir. Meu marido também ganhou uma vez e algumas amigas que entraram através de mim também receberam o dinheiro”, relata.

Hoje, Meri participa de seis grupos do giro solidário. Destes, três ela participa efetivamente e os demais apenas presta auxílio.

 

Grupos parados

Conforme Meri, após as últimas notícias sobre o giro solidário, os grupos estão parados, fato este que preocupa, pois para que continue retornando o dinheiro, o recrutamento de pessoas nunca deve acabar. Caso não haja inserção de novos membros, os investidores serão lesados. “As pessoas não estão com medo de entrar e não ganhar, mas estão receosas e inseguras por conta do quem vem sendo divulgado pela mídia”, lamenta.

Os grupos dos quais Meri participa são, em sua maioria, compostos por pessoas de Marechal Rondon, o que traz maior segurança. “Já me convidaram para alguns grupos diferentes, com pessoas de outras cidades, em que era necessário efetuar um cadastro, então acabei desconfiando que fosse um esquema de pirâmide financeira”, expõe a rondonense, acrescentando que o giro solidário, por sua vez, é algo muito claro. “Todo mundo consegue ver quem está participando e recebendo o dinheiro. São postadas as fotos dos comprovantes dos depósitos e nada é escondido. Além do mais, a pessoa que recebe o dinheiro sai fora do giro, podendo entrar novamente apenas em outro grupo”, frisa.

A alegação de o giro solidário ser um esquema e pirâmide financeira, na visão de Meri, é infundada. “Todos que participam do grupo são administradores e podem adicionar outras pessoas. Não há nenhum gerenciador acima dos participantes. Desta forma, tudo é organizado e dividido dentro do próprio grupo e entre os participantes”, defende.

O giro solidário funciona no modelo de mandala, que necessita do recrutamento frequente de novos membros em grupos de WhatsApp

Ajuda mútua?

Não foi somente na imprensa que o giro solidário gerou polêmicas. No âmbito judicial o assunto já está em discussão e há juristas que defendem a prática do giro solidário, imputando a ele uma única função: a ajuda mútua.

Para a advogada Cátia Regina Black, o giro solidário não tipifica nenhum crime e, inclusive, não é proibido. “Enquanto ajuda mútua pelo próprio participante, ele é entendido como uma doação, livre e espontânea. Não vejo como nada além de uma transição de doações”, diz.

De acordo com ela, não é possível tipificar o giro solidário como um esquema de pirâmide financeira, como é apontado por muitos. “Não vejo como se enquadrar dentro de uma pirâmide porque não há um gerenciador, assim como também não há alguém que fique com o percentual do valor que é investido pelos participantes”, pontua a advogada. 

Outra alegação seria o fato de que o giro solidário poderia ser enquadrado como crime de estelionato, o que, na visão da advogada, não é possível. “Primeiro porque estelionato é um ato continuado, embasado na fraude, e as pessoas que participam do giro não estão sendo induzidas ao erro quando são informadas que precisam trazer novos participantes para que o giro continue. Quanto mais pessoas ingressarem, o giro irá se manter e girar mais rápido, e isso é colocado claramente para as pessoas que começam a participar”, menciona.

Por conta disso, Cátia considera que a pessoa tem consciência de que está entrando em um negócio de risco quando começa a participar do giro solidário. “Ele (giro) não é proibido, mas sabe-se que se mais pessoas não começarem a participar, existe o risco de ele parar e, com isso, as pessoas serem lesadas, porque não haverá a quem atribuir esse gerenciamento, pois não há um gestor e, consequentemente, haverá a perda do dinheiro investido”, alerta.

O risco para as pessoas, na opinião da advogada, é sustentar o giro. “Enquanto ele estiver sendo sustentado, com o ingresso de novas pessoas, ele vai girando e não vai haver lesão aos participantes, visto que todos irão receber. Entretanto, a partir do momento em que o giro parar, consequentemente as pessoas serão prejudicadas”, comenta.

Todavia, a partir disso a questão deve ser delimitada. Na visão de Cátia, quando a pessoa entra em algum grupo, ela apenas será induzida ao erro ao passo em que ela for convencida de que o giro nunca irá parar e que não há a necessidade do ingresso de mais pessoas. “É difícil o participante entrar e dizer que não tem conhecimento dos riscos. As pessoas são convidadas a participar, não são adicionadas diretamente ao giro e, além disso, elas só irão ingressar no giro a partir do momento em que se dispuserem a doar o dinheiro”, reforça, acrescentando que as pessoas podem estar no grupo apenas como um espectador.

 

Investigações

Em diversos municípios do Paraná, assim como de todo o Brasil, o giro solidário passou a ser investigado e enquadrado em crimes como estelionato. “Ao meu ver, o giro não pode ser tipificado como crime porque ele não se enquadra estritamente em estelionato, nem no enriquecimento ilícito, até mesmo não existe um administrador, e nem no esquema de pirâmide financeira, porque para isso seria necessário o investimento de um percentual que seria recebido por um administrador, e no caso do giro não está havendo isso”, afirma Cátia.

 

Risco de golpes

O risco de haver pessoas de má-fé em meio aos grupos e isso vir a causar danos ou a prática de golpes às pessoas é algo inevitável, mas isso, para a advogada, seriam casos individualizados e que então poderiam ser tipificados como algum crime. “Por conta disso, o giro solidário propriamente dito não configura crime. Hoje não pode ser considerado um crime a menos que investigações sejam instauradas e os juristas se posicionem dizendo que vão equipara-lo, mas, fora disso, eu não vejo o giro solidário como um crime”, assegura.

A advogada analisa que alto ganho financeiro seria o motivo pelo qual o giro solidário está causando tanta polêmica. Se ultrapassado os R$ 1.710 estipulados pela Receita Federal para o recolhimento do Imposto de Renda, o valor passa a ser considerado uma sonegação. Mas isso, para Cátia, é responsabilidade individual de cada um e não do grupo como um todo. “Cabe ao participante entender que caso o ganho seja superior a esse valor, ele tem a obrigação de buscar um contador, fazer uma guia de recolhimento de Imposto de Renda e recolher o que é devido ao governo”, orienta.

 

Para delegado, é “um novo esquema de pirâmide financeira”

“Um novo esquema de pirâmide financeira”. É desta forma que o delegado de Polícia Civil de Marechal Cândido Rondon, Diego Valim, define o giro solidário. “A tese apresentada é uma promessa de ajuda mútua, mas sabemos que, na verdade, é mais um tipo de pirâmide financeira, como todos os demais esquemas que já existiram”, afirma Valim. 

A promessa de ganho fácil e rápido, conforme o delegado, é inexistente. “No início, algumas pessoas realmente ganham o dinheiro, até que outras pessoas comecem a entrar e no fim quem ganha são apenas aqueles que encabeçam a pirâmide. Chega uma hora que não há mais pessoas para entrar, os últimos participantes já depositaram e não tem mais ninguém que deposite para eles, então geralmente quebra a pirâmide”, ressalta, acrescentando que até chegar a esse momento, aqueles que gerenciam o esquema já obtiveram um lucro exorbitante.

Embora seja alegado que os valores investidos são voluntários e que não há ninguém que gerencie os grupos, Valim afirma que sempre há aqueles que estarão levando vantagem e ganhando dinheiro sobre os demais. Sendo assim, o giro solidário caracteriza crime contra a economia popular. “Mas, havendo ganhos absurdos, podem ainda ensejar outros crimes, como estelionato, e caso a pessoa esteja ocultando ou dissimulando de alguma forma os valores obtidos, poderá se enquadrar no crime de lavagem de dinheiro”, pontua o delegado, negando a afirmação de que os participantes do giro solidário estariam amparados por alguma lei do Código Civil.

 

Círculo vicioso

De acordo com ele, a partir do momento em que pessoas entram nos grupos e precisam arranjar mais participantes para o giro, torna-se um círculo vicioso. “As pessoas que ganham querem que mais pessoas entrem para que o giro tenha continuidade e com isso acabam se expondo nas redes sociais, muitas vezes através de vídeos, para conseguir chamar a atenção e despertar o interesse de mais pessoas”, alerta. 

Valim garante que as pessoas estão entrando em uma fraude e sendo induzidas a um ganho ilícito, por isso considera fraca a tese que alega a voluntariedade dos participantes. “Quem está gerenciando sabe que aquilo é uma pirâmide financeira, com a qual obterá ganhos em detrimento dos outros, e esse ganho é fraudulento”, reitera.

O delegado afirma que as pessoas tentam burlar as pirâmides financeiras, muitas vezes mudando os nomes, mas, de tempos em tempos, estes esquemas voltam a aparecer. “Nenhum esquema de pirâmide financeira que já existiu subsiste até hoje porque todas quebraram”, garante, acrescentando: “No começo a pessoa que lucra quer que assim continue, mas chega um momento em que o giro vai parar e isso é mais um reforço de que o giro solidário trata-se de uma pirâmide financeira e que em determinado momento vai quebrar”, expõe.

 

Atenção e cuidado

Embora a prática do giro solidário esteja fortemente presente em Marechal Rondon, Valim declara que ainda não houve registros de pessoas que foram lesadas. “Isso porque ainda está no início e não chegou a fase que a pirâmide quebra, ou seja, quando não há mais ninguém para entrar e os últimos participantes que entraram serão prejudicados”, considera. “Quando começarem a serem prejudicadas, as pessoas procurarão a delegacia e iremos ouvi-las para tentar descobrir e chegar até a pessoa que está encabeçando o giro”, menciona.

Segundo o delegado, a polícia está buscando esclarecer à população que uma hora a pirâmide vai quebrar e os participantes terão que arcar com os prejuízos. Conforme ele, não existe a promessa de ganho fácil, uma vez que para alguns ganharem, outros terão que perder. “É preciso que a população entenda que o giro solidário se trata de um esquema de pirâmide financeira e que por estar no início e haver relatos de pessoas que já ganharam, podem se sentir motivados a participar. No entanto, recomendo que procurem saber para quem estão depositando o dinheiro, ao menos para que possam se resguardar e não fazer qualquer depósito, muitas vezes em contas de pessoas que nem são da cidade”, avisa o policial, reforçando que pessoas que se sintam lesadas ou prejudicadas de alguma forma com o giro solidário devem imediatamente procurar a delegacia e registrar a denúncia.

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