Ao reverenciar a vida, entramos em um relacionamento espiritual com o mundo (Albert Schweitzer)
A espiritualidade apresenta-se como resposta à fragmentação pós-moderna, afirmando a possibilidade de conhecer, no discernimento, no fluxo das moções, na fé e na confiança em Deus, a própria vontade divina para cada ser humano. No mundo fragmentado das experiências particulares, emerge a universalidade da vontade de Deus. O discernimento espiritual torna-se, assim, um exercício de lucidez, capaz de conduzir o fiel entre os extremos: de um lado, as certezas absolutas e rígidas; de outro, a dissolução total em relativismos sem referência maior (RICOEUR, 1990).
O crente descobre, na fragilidade do processo de discernir, a certeza do Absoluto de Deus. Contra o totalitarismo, o discernimento mantém-se sempre aberto e dinâmico. Contra a pura fragmentação, firma-se na experiência concreta do Absoluto que se revela e se atualiza continuamente. Como recorda Aristóteles (1998), o ser humano é essencialmente político e relacional, encontrando sentido na articulação entre o particular e o universal.
Na balança da realidade, a pós-modernidade evidencia a força da fragmentação, do particularismo e do individualismo, ao mesmo tempo em que denuncia os limites da razão conquistadora e da vontade de domínio características da modernidade (LYOTARD, 2004). A consciência pós-moderna traz consigo certo reconhecimento da fragilidade humana, em contraste com a onipotência moderna. Prefere-se o fragmento ao universal, o cotidiano ao absoluto, desconfiando dos grandes projetos totalizantes (BAUMAN, 2001).
Esse movimento apresenta aspectos positivos, como a crítica aos totalitarismos, mas também riscos: o avanço do relativismo, no qual os particulares se multiplicam a tal ponto que nenhuma verdade é reconhecida como válida em si, ou todas são reduzidas a verdades parciais e efêmeras. Tal dinâmica gera a sensação de ausência da Verdade, fragmentada em múltiplas perspectivas (TAYLOR, 2010).
O particularismo, ao romper com referências universais, desarma o ser humano de horizontes transcendentais, provocando solidão e abandono. A reação pode oscilar entre a entrega ansiosa ao imediato e ao fragmentário, ou uma busca desorientada por consistência e sentido maior. Nesse contexto, a espiritualidade e o discernimento emergem como caminhos que oferecem horizonte universal e âncora no Absoluto, sem negar a historicidade e a fragilidade da condição humana (RICOEUR, 1990).
Do ponto de vista filosófico, Kierkegaard (1979) já havia apontado a angústia como categoria existencial fundamental: ela abre o ser humano para a possibilidade da transcendência. Heidegger (1995), por sua vez, descreve a condição humana como um “ser-para-a-morte”, cuja autenticidade depende de abrir-se ao mistério do Ser. Nietzsche (2001), ainda que crítico à religião, reconhece a necessidade de criar novos sentidos diante da fragmentação do mundo moderno. Mais recentemente, Zohar e Marshall (2000) introduzem o conceito de inteligência espiritual, destacando a capacidade humana de dar significado e valor às experiências fragmentadas.
Na perspectiva psicológica, Jung (2000) defende que a espiritualidade faz parte do processo de individuação, sendo expressão de conteúdos profundos do inconsciente coletivo. Frankl (2008), em sua logoterapia, reforça que o ser humano encontra sentido mesmo diante do sofrimento, sendo a dimensão espiritual o núcleo mais resistente da existência. Freud (2010), embora crítico da religião como “ilusão”, reconhece que ela responde a necessidades psíquicas profundas, revelando sua força na organização do desejo e do mal-estar na civilização.
A espiritualidade, no horizonte da pós-modernidade, revela-se como um caminho que reconcilia fragmentos e restabelece vínculos com o Absoluto. Teologicamente, ela aponta para a confiança radical em Deus, que não se reduz a verdades fixas e imutáveis, mas se revela dinamicamente no discernimento cotidiano. O Espírito, nesse processo, torna-se força de integração, guiando o fiel a encontrar sentido no meio da pluralidade: “quando vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade” (JOÃO 16:13, ARA, 1993).
Sob a ótica psicológica, a espiritualidade responde ao vazio existencial deixado pela fragmentação. Ela favorece a integração da psique ao oferecer um horizonte de transcendência que não nega os conflitos internos, mas os ressignifica como parte de um caminho de crescimento. Jung (2000) descreve este processo como individuação; Frankl (2008) como busca de sentido. Em ambos os casos, o espiritual não é acessório, mas fundamento da saúde integral do ser humano.
Filosoficamente, a espiritualidade transcende o relativismo ao reconhecer no fragmento um sinal do universal. Se a modernidade confiava demasiadamente na razão e a pós-modernidade dissolve-se em fragmentos, a espiritualidade oferece um terceiro caminho: um discernimento que não fecha o processo (contra o totalitarismo), mas também não se perde em relativismos estéreis (contra a fragmentação). Assim, fé, filosofia e psicologia convergem para afirmar que o ser humano, mesmo em sua fragilidade, pode encontrar no Absoluto o sentido último de sua existência.
Referências
ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BÍBLIA. Português. Almeida Revista e Atualizada. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FRANKL, Viktor. Em busca de sentido. Petrópolis: Vozes, 2008.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1995.
JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
KIERKEGAARD, Soren. O conceito de angústia. Petrópolis: Vozes, 1979.
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
TAYLOR, Charles. Uma era secular. São Leopoldo: Unisinos, 2010.
ZOHAR, Danah; MARSHALL, Ian. Inteligência espiritual. Rio de Janeiro: Record, 2000.
Quem é Osnei Francisco Alves

Osnei Francisco Alves é especialista na área de gestão, estratégia empresarial, marketing, comunicação, tecnologia, educação, entre outras. Escritor de livros e artigos científicos. Atualmente, gerente executivo do Senac em Marechal Cândido Rondon.
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