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Crack: uma pedra no caminho da vida

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“Estávamos indo comprar cerveja, eu e meu irmão, quando ele disse para mim que iríamos na casa de um amigo. Ao chegarmos no local, meu irmão olhou para mim e disse: “Amanda*, vamos fumar? Eu fui, nunca havia fumado. Foi minha primeira vez, porém não a última”. O relato, carregado de tristeza e angústia, é de uma jovem de 23 anos, que viu seu mundo desabar enquanto ainda era uma adolescente. O motivo? Uma das substâncias mais devastadoras: o crack.

Subproduto sujo e barato da cocaína, a droga que deve seu nome aos estalos que emite ao ser queimada logo se tornou o prazer e a praga da vida de Amanda. “Fiquei muito mal, sentia muita dor”, conta ela, sobre sua primeira experiência com o crack. “No começo a sensação era horrível, mas depois que eu soltava a fumaça parecia que tudo melhorava, me sentia anestesiada”, relata.

Amanda reside atualmente em Marechal Cândido Rondon, é casada e tem uma filha prestes a completar dez meses. Seu marido, Marcos*, de 31 anos, também é ex-

usuário de crack. A união do casal teve como base a droga. À época, Marcos havia retornado de Santa Catarina, onde foi para cursar o Ensino Superior, mas também onde ficou nove meses internado em uma clínica de reabilitação para dependentes químicos.

À reportagem do O Presente, Amanda abriu muito mais do que as portas de sua casa; com certa dor ao lembrar do passado não tão distante, a jovem mãe abriu seu coração e relatou como foi sua entrada no mundo das drogas. Conforme Amanda, tudo começou há dez anos, enquanto ainda morava na cidade de Paranavaí (PR). À época, com apenas 13 anos, ela foi apresentada pelo irmão, de 19, ao mundo perverso do crack.

A jovem declara que naquela época já consumia bebidas alcóolicas, mas nunca havia usado outras drogas. Segundo ela, o sentimento que predominava era o medo. “No começo eu ficava com medo de que familiares ou pessoas próximas me pegassem fumando”, diz.

Droga barata e facilmente encontrada nas ruas, o crack degrada muito rápido o usuário e causa dependência com a mesma velocidade. Em um primeiro momento, simula o prazer e a energia, mas em grandes quantidades deixa a pessoa agressiva e paranóica. “Depois do medo, a sensação que predominava era a euforia. Eu ficava muito ativa, passava dias sem dormir”, lembra Amanda.

 

As primeiras consequências

Com mais nove irmãos, Amanda revela que sua estrutura familiar não contribuiu para que ela abandonasse o “novo vício”. “Meu pai nos abandonou e minha mãe vivia em bares, se prostituindo. O que uma adolescente poderia se tornar?”, pergunta a jovem com lágrimas nos olhos.

Um dos maiores medos de Amanda em pouco tempo se tornou realidade. Sua mãe logo descobriu que ela estava usando crack. “Minha mãe me batia sempre eu usava, mas já tinha o meu irmão dentro de casa que usava e ela sabia disso. Foi ele quem me colocou nisso”, acusa.

Como tinha apenas 13 anos, Amanda ainda não se considerava uma viciada. “Na época eu estava estudando e meu irmão trazia as pedras pra mim e eu colocava no bolso do casaco e ia pra aula, no entanto, depois de um tempo comecei a fumar sozinha e a procurar ele (irmão) porque queria mais droga. Ele sempre me dava”, conta.

Passado um ano e não aguentando mais ver a filha naquela situação, a mãe de Amanda tomou uma atitude drástica e expulsou a filha de casa. “Tinha 14 anos de idade quando ela me expulsou de casa. Não tinha para onde ir, então fui morar na rua. Fazia programa para conseguir dinheiro e comprar a droga”, relembra.

Amanda viveu os dias mais amargos enquanto estava na rua. “A realidade das ruas é outra. Só quem viveu sabe”, lamenta.

 

A realidade machuca

Após algum tempo vivendo na rua e tendo que se prostituir para sobreviver, a jovem decidiu que não queria mais aquilo, pelo menos não naquele momento. “Estava cansada, há muitos dias sem dormir, então resolvi ir até onde meus irmãos moravam, porém, quando lá cheguei minha mãe não estava, ela tinha ido embora”, recorda Amanda.

O pensamento parecia ter mudado e Amanda e seu irmão mais velho começaram a trabalhar na roça e cuidar dos irmãos mais novos. “Depois disso eu casei, alguns dos meus irmãos também casaram e cada um seguiu sua vida. Minhas irmãs menores foram morar com uma tia”, comenta.

Ela conta que se casou duas vezes e que no segundo relacionamento seu marido, muito mais velho que ela, morreu de câncer. “Nessa época minha mãe apareceu novamente. Ela entrou em contato comigo e disse que estava morando em Oliveira Castro e que era para mim vir para Marechal tentar conseguir emprego em alguma fábrica ou frigorífico. E foi o que eu fiz. Vim morar na casa de uma amiga, mas não consegui trabalho. Após um tempo, conheci o meu atual marido, que também usava crack”, revela a jovem.

 

Nova vida, vício antigo

Logo quando chegou a Marechal Cândido Rondon, Amanda diz que sentiu uma certa dificuldade em adquirir o crack. “Onde eu morava antes era fácil conseguir a pedra, mas logo quando vim para cá foi difícil. Trabalhei por um ano em uma indústria e depois desse tempo já estava no meio das pessoas que usavam a droga”, menciona a jovem, que afirmou que durante este tempo ficou sem usar o crack. “Eu era uma pessoa melhor, mas depois comecei a conseguir a droga nas festas e bailes e então voltei a fumar”, comenta.

O preço que Amanda pagava para sustentar o vício era alto. Segundo ela, enquanto ainda era usuária, a pedra de crack era vendida a R$ 10 em Marechal Rondon. Por conta disso, a rotina da jovem se resumia a trabalhar incansavelmente para conseguir comprar a droga ao final do mês. “Eu ia trabalhar normalmente todos os dias, mas quando recebia meu salário eu pagava minhas contas e o restante eu usava para comprar crack. Era todo mês em torno de R$ 500 a R$ 600 gastos com a droga, somente em um único dia”, declarou.

A essa altura, o vício já era incontrolável e insaciável. “Quando eu tinha dinheiro chegava a fumar em torno de 150 pedras por dia. Não conseguia fazer nada, ia em um posto de saúde, dava um jeito de conseguir um atestado médico para poder faltar ao trabalho e ficar em casa consumindo a droga”, relata Amanda.

 

O estalo do vício

No início, Amanda conseguia o crack em festas, no entanto, depois de algum tempo, o local de tráfico mudou, e dessa vez o ponto de encontro entre traficantes e usuários passou a ser o centro de Marechal Rondon. “Íamos para o centro durante a madrugada. Às vezes saíamos de casa às 04 horas para comprar crack. Sempre tinha mais pessoas que também queriam comprar, então nos reuníamos em um determinado ponto e alguém levava a gente até o traficante”, revela.

De acordo com Amanda, depois que pegavam as drogas, eles iam procurar algum lugar para fumar. “Normalmente achávamos alguma casa em construção ou um lugar abandonado e ali ficávamos fumando o crack”, diz.

Os usuários de crack normalmente costumam fumar a droga em cachimbos, latas ou copos plásticos com tampa de alumínio. Questionada sobre como consumia o crack, Amanda preferiu não responder, apenas disse que “há várias formas de fumar o crack e que cada um consome do jeito que aprendeu”.

 

* Nomes fictícios usados para preservar a identidade dos entrevistados.

 

Em busca da mudança

Temendo perder a guarda da filha, Amanda decidiu que precisava de ajuda médica. Foi então que decidiu procurar o Centro de Atenção Psicossocial (CAPs) de Marechal Rondon, em março deste ano. “Vi que precisar tomar uma decisão e mudar de vida, mas só resolvi me internar quando o Conselho Tutelar veio na minha casa. Eu não queria perder minha filha”, ressalta Amanda.

Ela foi internada em abril e ficou por 45 dias em uma clínica de reabilitação para dependentes químicos em Londrina. Lá, a jovem destaca que pôde trocar experiências com outras mulheres que passaram por problemas semelhantes e, por isso, fez muitas amizades.

A clínica, segundo a jovem, era dividida em alas: a das mulheres e dos homens. Durante o tempo em que esteve em tratamento, Amanda tinha consultas regularmente com uma psicóloga. “A minha psicóloga era ótima, me tratava bem e me encorajava a largar o vício, sempre dizendo para mim pensar na minha filha e no quanto ela precisa de mim”, enaltece.

Além das consultas médicas e psiquiátricas, Amanda também fazia algumas atividades recreativas. “As consultas me ajudavam muito e, além disso, eu também aprendia a fazer artesanatos. Saí de lá uma outra pessoa”, afirma.

O marido de Amanda também passou por mais um internamento no início deste ano. Desta vez, Marcos ficou um mês em uma clínica de reabilitação em Rolândia.

 

As “marcas” da droga

Quem cai nas teias dessa droga derivada da cocaína tem em um curto espaço de tempo a saúde devastada, as relações sociais destruídas e a vida destroçada. São depoimentos crus, sem meias palavras. Verdadeiras “marcas do crack”. “O crack acabou com meus pulmões, meus dentes e rins e, acima de tudo, me incapacitou de ter uma família e uma vida própria. Além disso, vivo dependendo da ajuda de um CAPs, pois preciso ter um controle de remédios que tomo todos os dias”, expõe Amanda.

Para ela, a sensação de usar o crack é indescritível. “Se fosse para comparar com algo eu não conseguiria, porque todas as outras sensações do mundo eu considero boas e gostosas, diferentemente do crack, que acaba com a gente”, declarou Amanda, que teve sua autoestima reduzida a zero enquanto usava a droga. “Eu só sentia vontade de ficar escondida.  Quando tive minha filha eu não tinha vontade de ficar com ela, muito menos de cuidar”, lamenta.

O usuário do crack mergulha em total perda de contato com a realidade e em uma tamanha dependência que nada, absolutamente nada, é mais importante do que a próxima pedra a ser fumada. Emprego, amigos e família (pais, cônjuge e até os próprios filhos) desabam na escala de valor de quem está possuído pela droga. “Você acaba com sua vida, com a sua família. Se você tem filhos, um marido ou uma esposa, nunca faça isso. Os usuários que já passaram por recuperação não querem essa vida novamente, porque é algo horrível e muito difícil para se recuperar. Quando se arrependerem pode ser tarde demais e o tempo não volta atrás”, aconselha Amanda.

 

Uma nova realidade

Depois dos 45 dias de internamento e após ter passado o seu primeiro Dia das Mães longe da filha, Amanda afirma que não quer e não precisa mais de tratamento. “Quando saí do hospital e vi minha filha, tive certeza que nunca mais iria querer voltar para o mundo das drogas. Estou liberta e controlada, agora sei o que quero para minha vida”, garante a jovem, que já começou a fazer planos para o futuro. “Pretendemos nos mudar, porque aqui não estamos conseguindo emprego. Quero começar a trabalhar e assim ocupar minha cabeça, colocar minha filha na creche e lutar pela minha vida e da minha família”, enfatiza.

Um dos sonhos de Amanda é concluir os estudos, que foram interrompidos por um dos seus ex-maridos por conta de ciúmes. “Pretendo voltar a estudar, fazer alguns cursos. Meu sonho é cursar Veterinária, gosto muito de animais. Hoje, se tivesse oportunidade, com certeza eu cursaria”, revela Amanda.

Desde que saiu do tratamento, a jovem não teve contato com sua mãe nem com seus irmãos. “Queria voltar a falar com eles e também queria que minha mãe conhecesse a neta dela. Além do mais, tenho duas irmãs menores, uma de seis e a outra de 14 anos e meu desejo é um dia trazer elas para viver comigo, assim elas serão criadas por alguém da família e que as ama”, assegura a jovem.

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