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Um exame que pode mudar sua vida

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Criado com o objetivo de avaliar a qualidade do Ensino Médio no Brasil, a cada ano o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) acumula mais funções.

Desde 1998, ano em que começou a ser aplicado no país, a prova vem reunindo mais atribuições, como ter se tornado requisito obrigatório do programa Ciência Sem Fronteiras, que garante bolsa de estudos no exterior, proporcionar o ingresso na faculdade por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) e até mesmo conceder bolsa do governo para o Ensino Superior, como no caso do Programa Universidade para Todos (Prouni).

Com tantos benefícios ligados à prova, que é considerada o segundo maior vestibular do mundo, ficando atrás apenas do Gaokao, exame de admissão do Ensino Superior da República Popular da China, não é novidade que, a cada ano, o Enem some milhões de inscritos pela possibilidade de poder transformar o futuro de estudantes brasileiros, assim como mudou o destino do rondonense Maurício Wilmsen, de 34 anos.

Hoje, Maurício é médico veterinário, vive em Botucatu (SP) e é doutorando pelo Departamento de Clínica Veterinária da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). Sua relação com o Enem, no entanto, começou em 2005, quando prestou o exame pela primeira vez para concorrer a uma bolsa integral no curso de Medicina Veterinária oferecido por uma universidade particular da região. “O Enem entra na minha história como uma peça fundamental para mediar a minha questão como aluno egresso em uma universidade”, considera.

Assim como oito em cada dez brasileiros, Maurício foi aluno de escola pública, motivo que, de acordo com ele, permite analisar com mais critérios os motivos pelos quais ele não obteve a capacitação necessária para ingressar na universidade pública. “Sou fruto da geração que enfrenta os severos problemas que envolvem a marginalização do ensino público no país. Realmente não era o aluno mais interessado, mas também nem tinha como ser”, expõe. “Toda a história que ouvimos sobre os problemas do ensino no Brasil é a mais pura verdade, eu sou parte da sucata produzida. Vivi todas as situações que envolvem professores que entram em sala de aula completamente desestimulados, que enfrentam cargas horárias exaustivas para conseguir grana no fim do mês. Eu era parte dos alunos que lotavam as salas de aulas, não tinha estímulo algum para estudar, além de ter que encarar estruturas deficitárias que o colégio oferecia”, complementa.

Ele explica que, frente ao tipo de estrutura, não existia espaço para o diálogo, já que de qualquer forma este não era um dos objetivos de ensino dos lugares onde estudou. “Eu não aprendia, sentia medo. E hoje tenho certeza que silêncio não pode ser encarado como uma parcela contributiva na formação de um ser”, descreve.

Maurício pontua, entretanto, que vale a ressalva da marginalização do ensino público no Brasil, que é, sim, capaz de intervir no futuro da vida e no ingresso de muitos alunos em universidades e/ou faculdades públicas e até mesmo privadas. “Não quero destruir o ensino público, até porque temos escolas públicas que são referência no ensino, bem como indicadores de aprovação e de notas altas no Enem no país. Porém, ao tipo de ensino ao qual fui submetido, não era suficiente para concorrer por uma vaga em uma universidade pública (federal ou estadual) pelo déficit de aprendizagem, e minha família não teria condições financeiras de pagar pelo ensino privado”, pontua o médico veterinário.

Porta para o futuro

Apesar de já estar no doutorado, no ano passado, Maurício realizou novamente o Exame Nacional do Ensino Médio para entender melhor o novo formato da prova e pensando em contribuir na preparação dos alunos de um de cursinho pré-vestibular gratuito oferecido pela Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da Unesp, na qual é professor voluntário. “Grande parte deles fazem parte da população carente e que almejam a universidade. Não podemos inviabilizar essa parcela da população, alguém precisa fazer alguma coisa para essas pessoas e eu estou fazendo a minha parte. Durante o meu trajeto até aqui, contei com a ajuda de muita gente. Então entendo que eu devo contribuir com essas pessoas. Ser professor voluntário de um cursinho para alunos, que como eu acreditam em um futuro melhor para si, ou até mesmo para sua família, além de ser um prazer, é uma obrigação, já que eu entendo que as oportunidades não são iguais para todos”, resume.

Nesta segunda participação do exame, Maurício atingiu uma pontuação alta e foi aprovado no curso de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) em 4o lugar, contudo, optou por continuar na área veterinária e concluir o doutorado. “Se não fosse pelo Enem, ou se ele não existisse, talvez eu demorasse mais alguns anos para conseguir chegar até a universidade, afinal eu precisaria nivelar meus conhecimentos para poder concorrer no vestibular. Contudo, eu sabia que em algum momento, nem que fosse com 60 anos, eu chegaria lá”, reafirma. “Não desistiria de prestar vestibulares para cursar Medicina Veterinária de maneira alguma. Felizmente, consegui mais rápido do que imaginava”, celebra.

Na condição de bolsista Prouni, Maurício conta que muitas vezes sofreu preconceitos. “A gente era cobrado e se cobrava para obter bom desempenho em todas as disciplinas do curso, além de ter que ter no mínimo 85% de presença. Dessa maneira, qualquer desafio não atingido era como se você estivesse um passo a mais para perder sua bolsa durante todo o curso”, aponta.

Apesar disso, ele reafirma que, sem dúvidas, o Enem foi uma porta para o futuro e pode ser para o de muitas pessoas. “Acredito que os caminhos que são trilhados a partir do momento que você entra na universidade são quase que exclusivamente escolhas suas. Eu fiz uma boa opção e consegui entrar em uma ótima universidade”, menciona.

Preparação

É com o mesmo objetivo de Maurício que a estudante do 2º ano do Ensino Médio Isabel Feiden da Costa, de 15 anos, realiza desde o ano passado o Enem. Apesar de não estar no ano de conclusão da educação básica, a estudante, que sonha em cursar Engenharia Civil na Universidade Tecnológica Estadual do Paraná (UTFPR) utilizando a pontuação do Enem como forma de ingresso, tem feito o exame como forma de ganhar experiência e acumular conhecimento. “Para não ter tanta pressão e saber como seria a prova, ter uma experiência maior no terceiro ano, almejando um bom desempenho, tomei essa decisão no ano passado”, conta.

Ela acredita que realizar o Enem nos dois anos anteriores ao terceirão vai agregar ainda mais conhecimento para o próximo ano, enfatizando que a experiência foi fundamental para que ela tenha um melhor desempenho e vá para a prova de forma mais tranquila. “Apesar de muitos estudantes terem o incentivo para se inscreverem como treineiros, tendo apoio dos pais e professores, alguns se inscrevem, mas não dão a devida importância à prova, então também é fundamental que o aluno tenha a iniciativa e o interesse de ter um bom resultado”, conclui a estudante.

Isabel pontua que em relação ao exame do ano passado, surpreendeu-se muito com a prova deste ano, tendo em vista que nos colégios públicos não há tanto incentivo e preparação em comparação às instituições particulares para que os estudantes que não estão no 3º ano realizem a prova como treineiros e, mesmo assim, ela alcançou um bom resultado. “Eu avalio que a prova foi tranquila”, diz.

O tema da redação, que tratou dos “Desafios para a formação educacional de surdos no Brasil”, não aparecia entre os mais cotados entre professores, sites de estudos e cursinhos preparatórios. Todavia, conforme a professora de Língua Portuguesa e Produção Textual do Colégio Evangélico Martin Luther, Letícia Schoch, boa parte dos alunos não se surpreendeu com a temática por estarem preparados no sentido da técnica da escrita. “Trabalhamos temas diversos em aulas de atualidades, mas eles sabem que o Enem muitas vezes surpreende na redação e não é aquele tema clássico de vestibular”, enaltece.

Os estudantes, menciona, têm consciência de que o tema da redação é abrangente e não o óbvio, porém, por terem conhecimento da técnica, somaram-na com o conhecimento de mundo. “Trabalhamos muitas questões que encostam-se a essa temática, como educação, bullying, exclusão de pessoas da sociedade, e acredito que justamente por isso eles não ficaram surpresos”, avalia. “Ninguém disse que foi um tema fácil. Tiveram que pensar bastante para chegar a algum tipo de argumento que coubesse no tema”, complementa.

A coordenadora pedagógica do Ensino Fundamental 2 e do Ensino Médio, Adriana da Cunha, pontua que a surpresa maior talvez foi para aqueles estudantes que focaram apenas em temas da atualidade. “O importante é o aluno saber a técnica, o escrever, claro que tendo argumentos facilita muito, mas saber escrever já é um grande caminho andado e depois você trabalha no seu conhecimento. Às vezes você tem conhecimento e se perde por não saber estruturar, até porque o Enem exige uma especificidade de produção textual”, enfatiza.

Ela observa que uma grande lacuna dos estudantes hoje está na interpretação. Em muitos casos, a proposta estava clara, todavia o candidato não soube fazer a leitura de forma a interpretar e compreender o texto exposto para escrever. “É preciso trabalhar a produção em si, a questão técnica, mas também para que o aluno possa interpretar bem todas as questões, porque mesmo que tenha o conhecimento específico, se não há interpretação você não consegue aplicá-lo, especialmente no Enem, no qual os textos que vêm como base são maiores”, resume Adriana.

Confira a matéria completa na edição impressa desta sexta-feira (10).

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