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Padre Marcelo Ribeiro da Silva

O movimento da vida

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No momento em que escrevo cai uma chuva serena e constante. Ela me leva naturalmente a pensar no lar em que cresci. Recordo que nos dias chuvosos amava comer pipoca enrolado num cobertor para ver um filme. Recordo também o gosto de ser família, de nos encontrar reunidos em um clima de amor e esperando aquele chocolate quente que só das mãos generosas de uma mãe pode vir, ainda de dividir aquele espaço apertadinho no sofá com o pai que já foi embalado pelo sono. Por tudo isso sinto muita gratidão: como tenho a agradecer o dom da vida daqueles que se doaram para que eu tivesse vida!

Vamos dar um salto para a contemporaneidade. Talvez você que esteja lendo esta reflexão já tenha passado da condição de ser cuidado para a de cuidador de uma família. Pense bem, você que há pouco tempo recebia a amabilidade de alguém, hoje é aquele que tem a responsabilidade de prover com afeto um lar. Digo isso para lhe ajudar a perceber que a vida tem uma orientação: ela é um bem recebido que tende a se tornar um bem doado.

Cabe uma breve interpretação da proposição acima: o mistério da vida se concentra nessa fórmula.

A vida não é produto de nada que tenhamos feito, fomos simplesmente agraciados com ela, ela nos foi doada e por um bom período foi o cuidado de outros que nos proporcionou as condições para continuarmos a existir. E para que a recebemos nessas condições? Para aprendermos a doá-la.

Sim, a recebemos como um dom para aprendermos como fazer dela uma oferta, para conseguirmos nos enxergar como dons que são capazes de vir a se transformar em doação.

Isto é o que chamamos de vocação. Quer dizer, o chamado ao dom que devemos nos tornar. Somos essa possibilidade de virmos a ser um dom no mundo para os outros. Esse é o curso espontâneo da vida, esse é o fluxo em que nossos pais mergulharam e através do qual eles se tornaram a possibilidade de geração e acolhida de nossa própria vida.

Foi também em virtude desse fluxo que encontramos em nossa vida pessoas que cuidaram de nós. E diante desse fluxo é que hoje devemos responder a respeito da orientação que estamos dando para a nossa vida: se caminhamos para ser uma árvore com muitos frutos ou uma semente dormente.

Espero que essas palavras nos ajudem a entender o contrassenso que existe no egoísmo consumista hodierno. Ele não é apenas um perigo para os outros, mas um grave padecimento contra a nossa própria vida. Simplesmente, ele faz da vida um “dom avarento”, uma luz que não se difunde por medo de se gastar uma força que a si próprio consome para não ter que se expandir, um ciclo de carência que traga todo o amor, na tentativa de resolver com o muito receber a inquietude do pouco doar.

Foi para contrastar esse esmorecimento egoísta da vida que comecei com a recordação do lar e com essa mesma memória desejo terminar.

Quando a consciência nos acusa do caminho infrutífero que nosso egoísmo esteja a nos levar, quando a palidez dos dias sem doação chegar a nos inquietar, lembremo-nos de que podemos recuar mais uma vez às recordações límpidas do nosso lar; lá nos encontraremos mais uma vez com aquilo que deveríamos nos tornar: amor recebido chamado a tornar-se amor doado.

Marcelo Ribeiro da Silva é padre da Diocese de Toledo
Reitor do Seminário São Cura D’Ars
Doutorando em Filosofia – Unioeste

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