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Geral Ortorexia psicológica

Busca desenfreada pela melhor versão de si traz riscos à saúde mental

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(Foto ilustrativa: Pexels)

Horas e horas de constante atividade: trabalho, estudos, exercício físico em dia e uma alimentação completamente saudável. Uma rotina que engana quem vê de fora e, no interior da pessoa, causa cobrança constante e eterna sensação de insuficiência em prol de impressionar a terceiros mais do que a si mesmo. É assim que ortoréxicos psicológicos vivem a vida.

Sem muitas pesquisas, mas com repercussão nas mídias, a ortorexia psicológica é uma derivação da ortorexia nervosa, explica a psicóloga rondonense Fátima Tonezer. Ela diz que o termo ortorexia nervosa foi cunhado por Steven Bratman e faz referência a uma busca extrema pela alimentação saudável, num nível obssessivo. “O que se estuda, primordialmente, é a ortorexia nervosa. Somente mais recentemente se observou a ortorexia psicológica, que seria uma preocupação excessiva em ser a melhor versão de si”, resume.

Ao O Presente, Fátima comenta que para certas pessoas, apesar do esforço constante, nunca há satisfação. “São duas frentes com a mesma raiz: a ortorexia. Uma vai para o lado da alimentação e outra para o lado psicológico, no sentido de nunca ser bom o suficiente”, menciona, emendando que em ambos os casos ainda não há definições que as enquadre como doenças mentais propriamente ditas, mas aproximam-se do transtorno obsessivo compulsivo (TOC), visto que há um domínio de pensamentos e comportamentos obsessivos nas duas linhas.

 

ORTOREXIA NERVOSA

Mesmo se aproximando à classificação de transtornos alimentares, a ortorexia nervosa se diferencia da anorexia e bulimia, por exemplo, visto que nesses casos o problema se restringe à quantidade de comida. “Na ortorexia nervosa, por outro lado, há preocupação sobre a qualidade do que se come, tentativa de ser o mais natural possível, investigação da origem dos alimentos, exclusão de grupos alimentícios inteiros e obsessão com o modo de preparo e cozimento”, caracteriza Fátima, salientando que são comportamentos levados sempre a um nível obsessivo, fazendo a pessoa pensar durante horas no que vai comer e como vai preparar.

As consequências, segundo ela, são de caráter físico, como perda de peso, desnutrição e danos em órgãos internos, e emocional, quando há o desprezo pelo modo que outras pessoas se alimentam, gerando um custo social psicológico.

 

ORTOREXIA PSICOLÓGICA

A ortorexia psicológica, por sua vez, segue no âmbito de comportamentos obsessivos e tem apoio na crescente exposição virtual observada na contemporaneidade. “A pandemia revelou tendências e a ortorexia se intensificou. A exposição nas redes sociais vende a ideia de corpo perfeito, comportamentos ideais e estilo de vida exemplar. Assim, você nunca é suficiente. Quando há essa obsessão pela melhor forma, o sujeito não se permite uma convivência social, porque só pensa em trabalhar, estudar e se aperfeiçoar”, exemplifica a profissional rondonense, pontuando que é como se o mantra do “enquanto você dorme outra pessoa está fazendo” se repetisse inconscientemente e fizesse com que momentos de descanso fossem invalidados em prol do aperfeiçoamento.

 

DIREITO AO ÓCIO

A busca constante e inalcançável pela melhor versão de si dificulta o convívio social, afirma a psicóloga. “Torna a pessoa chata e desagradável, visto que há uma cobrança para que outras pessoas façam o mesmo, além de um julgamento por elas não estarem produzindo tanto quanto poderiam. Caso as pessoas não estejam no mesmo nível do ortoréxico, elas são descartadas e isso leva ao isolamento do paciente”, destaca.

A cobrança, enaltece Fátima, vem do interior do ortoréxico, que teve a produtividade enraizada na sua vivência. “O ócio é considerado absurdo. É como se ver uma série e ficar no sofá fosse perda de tempo. A cobrança é interna e antes que alguém me cobre eu mesmo faço isso”, compara.

Psicóloga rondonense Fátima Tonezer: “É complicado aceitar, mas a busca desenfreada pela melhor versão, assim como uma alimentação controlada ao extremo, pode te adoecer quando ganha dimensões obsessivas” (Foto: O Presente)

 

PRODUTIVIDADE FAKE

Pensar que um ortoréxico psicológico adoece por produzir ao extremo e em quaisquer circunstâncias não faz jus à realidade, observa a profissional. Segundo ela, nem sempre os inúmeros aperfeiçoamentos de fato geram algum benefício ou satisfação pessoal. “O anoréxico faz isso em prol de um desenvolvimento, mas aí entra a pergunta: estou me desenvolvendo para quem? Na realidade, o objetivo passa a ser impressionar os outros. O filtro é o outro e o ortoréxico emplaca essa busca para colocar luzes sobre si. A quantidade dos aperfeiçoamentos e a admiração que isso gera em terceiros é o que importa para ele”, ressalta.

Sem uma utilidade, o amontoado de informação gerada, destaca a rondonense, se converte em simples repertório. “Informação não processada, não transformada em conhecimento, é lixo. Às vezes é um lixo chique, mas é lixo. Conhecimento é saber e fazer algo com o que sei. Se não consigo aplicar o que eu sei, qual é a finalidade? É acúmulo”, enfatiza.

 

COMPARAÇÃO DESLEAL

Sob o mantra do autoconhecimento, a psicóloga lamenta que, na maioria dos casos, o conhecimento de si próprio é apenas um acessório, pois o que importa é que os outros vejam a suposta evolução pessoal. “Ser a melhor versão é ser quem você pode ser e isso nunca vai ser possível se comparar ao outro. Trata-se do seu melhor dentro das suas condições, ressignificando o passado e fazendo o que realmente te completa”, indica, acrescentando: “Na calada da noite, essa pessoa se pergunta por que e para quem faz tal coisa, porque não é para si. Se assim o fosse, nunca faria”.

Para ela, a ortorexia psicológica pode ser evitada quando se passa a olhar para dentro de si e não para fora. “Enquanto a comparação for externa, eu nunca vou ser o melhor. Eu me comparando com clareza, com um olhar menos crítico, percebo que a pessoa que me tornei hoje é melhor do que já fui um dia. Por outro lado, a ideia de ter de estudar, ler, fazer cursos, ter o corpo perfeito, cuidar da alimentação e ser o melhor em tudo é um peso muito grande e não corrobora para a saúde mental, apenas instaura uma sensação de insegurança, fracasso e insuficiência”, frisa.

 

LIMITE ENTRE SAÚDE E DOENÇA

É difícil perceber que a busca desenfreada pelo bem-estar e melhor versão de si não seja saudável, considera a profissional. “É complicado aceitar, mas a busca desenfreada pela melhor versão, assim como uma alimentação controlada ao extremo, pode lhe adoecer quando ganha dimensões obsessivas”, alerta.

Segundo ela, em ambas as vertentes da ortorexia há limitação no convívio social e as pessoas buscam ajuda geralmente quando o quadro já gerou problemas físicos. “No caso da ortorexia nervosa, as pessoas precisam de uma equipe multidisciplinar, com endocrinologista, gastroenterologista, nutricionista, psicóloga e psiquiatra. No caso da psicológica, o acompanhamento requer um trabalho de psiquiatria e psicologia a longo prazo. Muitas vezes, é necessário entrar com medicação para controlar os sintomas obsessivos compulsivos e, posteriormente, trabalhar as origens do problema”, aponta.

 

SAÚDE MENTAL EM ALTA

Em Marechal Cândido Rondon, assim como em âmbito global, a psicóloga considera que a pandemia levou muitas pessoas aos consultórios. “A convivência se tornou difícil, porque antes conseguíamos evitar o contato diante de problemas no relacionamento, tínhamos como fugir, mas a pandemia nos tirou isso. Percebo que as listas de espera dos profissionais de psicologia aumentaram bastante”, constata. Conforme a rondonense, mesmo que as ortorexias nervosa e psicológica não sejam diagnosticáveis, há casos em potencial no município rondonense.

Porém, mais do que reconhecer o pensamento obsessivo, é preciso buscar ajuda, orienta Fátima. “Existem três fases: ser inconsciente sobre o problema; ter consciência, mas não fazer nada sobre isso; e, por fim, ter consciência e agir com forças internas ou apoio externo para enfrentar”, evidencia.

 

PÍLULAS MÁGICAS NÃO EXISTEM

Fátima menciona que, no último século, a saúde mental tem sido negligenciada e apenas recentemente a área recebeu a atenção devida. “O mercado de negócios sempre busca novas oportunidades. No Brasil, de 2010 para cá, o movimento comercial adotou a linha da inteligência motivacional e transformou isso em um produto”, expõe.

Com recortes das terapias cognitivas comportamentais, muitos “gurus motivacionais” surgiram no mercado ofertando pílulas mágicas que vendem a solução imediata para todos os problemas. “Trabalho na área há mais de dez anos e sempre há evolução, nada está pronto, mas algumas pessoas recortam e usam alguns ensinamentos como se fossem remédios mágicos. Emagrecimento, problemas pessoais e emoções exacerbadas seriam resolvidos num estalar de dedos, mas isso não acontece na vida real”, ressalta.

A venda de receitas prontas, aponta a psicóloga, desconsidera a individualidade dos sujeitos. “É fundamental que eu, como ser humano, desenvolva o meu autoconhecimento, mas no sentido de entender quem sou eu, quais são as minhas necessidades e como atendê-las. É um mergulho interno”, relaciona.

 

INTELIGÊNCIA EMOCIONAL

O apelo pela aprimoração da inteligência emocional é algo louvável, pontua Fátima, e para isso é preciso assumir que se é ignorante emocional. “Nossas emoções são essenciais e precisamos aprender a lidar com elas. Por outro lado, alguns recortes de terapias ligadas à inteligência emocional passam a impressão de que ter inteligência emocional é chegar num estado de emoção nenhuma. Se eu não tenho emoção, eu não sou humano”, enfatiza.

De acordo com a psicóloga, a negação às emoções é aprendida culturalmente e por isso o aprendizado é necessário. “Alguns materiais pulam essa parte, saem do choro convulsionado para a plenitude, mas há todo um processo. Entre o branco e o preto há uma gama enorme de cinzas e o ponto de equilíbrio é em algum lugar ali, não exatamente no mastro central. Se quero ter saúde mental, ser uma pessoa equilibrada, preciso demonstrar os sentimentos. Devo sempre expressar de acordo com a situação e o que é aceito socialmente”, enaltece.

 

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