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Geral Sensação de vazio

Velórios em tempos de pandemia: rituais abreviados frustram e podem levar à depressão, alerta professora da Unioeste

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Pesquisadora alerta que a não realização de ritos deixa o enlutado frustrado e que essa frustração pode se transformar em um problema psicológico, melancolia ou depressão. Por isso, ela orienta as pessoas a buscarem maneiras de materializar a morte para aplacar a angústia causada pela impossibilidade de velórios tradicionais (Foto: Divulgação)

Com o advento da pandemia, muitos feitos até então simples e corriqueiros tomaram em si um significado muito maior. Por outro lado, também grandes expressões da vida humana tiveram de se readequar às novas circunstâncias para continuar significando e, ao mesmo tempo, não gerar risco aos envolvidos. Desde simples idas ao mercado até cerimônias de casamento, a rotina foi modificada e a população teve de lidar com as novas maneiras, com novos e atenciosos cuidados.

Contudo, não só na vida as coisas mudaram. As celebrações dos mortos tiveram de ser totalmente repensadas visando evitar a contaminação dos envolvidos, desde a preparação do corpo até os ritos fúnebres. Para falar sobre a temática, a reportagem de O Presente entrevistou a doutora em Ciências Sociais, antropóloga e historiadora Andreia Vicente da Silva, que discorreu sobre os estudos feitos por ela referentes à morte nesses tempos de pandemia.

Docente na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), a educadora ministra aulas atualmente na pós-Graduação em História, campus de Marechal Cândido Rondon, e no curso de Ciências Sociais, disciplina de Antropologia, no campus de Toledo. Andreia pesquisa rituais de morte há muitos anos, especificamente sobre os ritos de morte dos evangélicos. “Agora, no contexto do coronavírus, estou trabalhando com rituais de morte na interseção dos ritos com diretrizes de saúde pública e, além disso, nas maneiras de expressão, avaliando como é que as pessoas se expressam a partir dessas novas modalidades de ritos”, resume a doutora, que produziu dois artigos sobre a temática, intitulados “Os ‘ritos possíveis’ de morte em tempos de coronavírus” e “Velórios em tempos de Covid-19”, ambos disponíveis na plataforma eletrônica Academia.edu (https://www.academia.edu/).

Doutora em Ciências Sociais, antropóloga e historiadora Andreia Vicente da Silva: “As pessoas estão fazendo reuniões virtuais em que membros das famílias de lugares distintos se reúnem, cantam, falam, conversam em uma espécie de reunião. Falta o abraço, falta o corpo, mas é uma maneira de alento” (Foto: Divulgação)

 

MANUAL DE MANEJO DE CORPOS

Em suas produções, Andreia aborda o Manual de Manejo de Corpos, divulgado pelo Ministério da Saúde logo quando o estado de pandemia foi divulgado no Brasil. “Nessas instruções há uma série de procedimentos que visam evitar a contaminação dos vivos, profissionais de saúde que lidam com os corpos e parentes. Você tem aí uma série de diretrizes que interferem nos ritos de morte. Por exemplo, o morto precisa ser colocado num caixão lacrado envolto em três camadas impermeabilizantes; não é indicado que seja realizado o velório; só um parente pode ver o corpo quando o reconhecimento não é feito por fotografia. Enfim, não há nenhuma aproximação com o corpo, não pode beijar, não pode tocar, não pode conversar, as pessoas não podem se reunir”, expõe, afirmando que essas medidas afetam enormemente as pessoas ritualizadas nesse momento.

 

RITUAL FUNERÁRIO

Aos enlutados, o Manual de Manejo de Corpos, conforme a estudiosa, interfere diretamente na celebração fúnebre, tanto em seus atos como em seus significados. Segundo ela, dois pontos principais do ritual funerário são prejudicados nessas circunstâncias. “Primeiramente, a aproximação dos vivos em relação aos mortos. As pessoas querem ver o corpo, querem tocar e se certificar de que aquela pessoa realmente faleceu. Só a visão do corpo e a presença no velório são condições que trazem aos indivíduos essa materialidade da morte. Quando você impede a visualização do corpo, você afeta diretamente a possibilidade de expressão no velório”, destaca.

O segundo, menciona a docente, é a união dos vivos no velório. “As pessoas se unem, porque querem compartilhar emoções, querem falar do morto, querem chorar e apoiar, querem um abraço. São expressões que acontecem dentro de um velório”, ressalta Andreia, complementando: “Se você impede um velório de acontecer, você lança as pessoas na solidão absoluta numa situação muito difícil que é o momento de perda. Então, esse manual suprimiu e abreviou os rituais funerários, afetando as possibilidades de expressão”.

 

CELEBRAÇÕES DIFERENCIADAS

De acordo com a doutora em Ciências Sociais, existem algumas formas de os enlutados passarem pela perda de maneira um pouco mais confortável, mesmo diante das limitações. “O que os psicólogos indicam é que as pessoas busquem maneiras distintas de ritualizar seus mortos. Se a ritualização tradicional, aquela que todo mundo realizava antes, não pode acontecer por um tempo, as pessoas devem procurar e criar formas, o que a gente chama de rituais contemporâneos”, recomenda.

As alternativas, conforme ela, variam desde celebrações on-line até presenciais em locais não convencionais. “As pessoas estão fazendo encontros virtuais em que membros das famílias de lugares distintos se reúnem, cantam, falam, conversam em uma espécie de reunião. Falta o abraço, falta o corpo, mas é uma maneira de alento. Alguns evangélicos têm feito o velório pelo Facebook, em lives. Outros estão montando altares domésticos em homenagem para esse morto. Uma das coisas que aconteceu nos cemitérios, embora não pudesse ter velório, foi de as pessoas, as vezes, se reunirem em tendas abertas, coletivas, numa celebração à pessoa que partiu”, compartilha.

 

FRUSTADO

Para a antropóloga, os rituais contemporâneos auxiliam na vivência do enlutado, mas ainda assim se sofre muito nesse momento de perda. “A não realização dos ritos tradicionais deixa o enlutado com uma sensação de vazio, frustrado. Posteriormente, essa frustação pode se transformar em um problema psicológico, uma melancolia, uma depressão, porque a pessoa sente que não honrou seu ancestral ou sente que aquela morte não aconteceu, porque não visualizou e nem participou dessa morte. Então, buscar maneiras de materializar a morte é buscar meios para aplacar uma certa angústia que fica nos enlutados pela impossibilidade da ritualização”, salienta Andreia.

 

O Presente

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