Fale com a gente

Marechal 100 por mês

Atendimento a mulheres vítimas de violência aumenta 330% em Marechal Rondon

Publicado

em

(Foto: Pexels)

Uma vendedora, ex-moradora da região, mas que hoje vive em outro lugar do país, tinha 19 anos de idade quando encontrou seu príncipe encantado. Os olhos inocentes avistavam a vida como um conto de fadas repleto de tudo que o dinheiro jamais poderia comprar. “Ele era um homem maravilhoso, no início”, conta Inês*.

Após o casamento as coisas mudaram e o castelo começou a ruir. “Por causa dele, me afastei das amizades, principalmente as masculinas, e comecei a frequentar menos a casa dos meus pais. Também não podia mais trabalhar, pois, segundo ele, ‘mulher minha não trabalha’. Até a cor do meu cabelo ele controlava”, relata.

Durante muito tempo, Inês manteve sua dor em silêncio, até que um dia foi a gota d’água. “O dia que ele descontou a raiva dele nos nossos filhos. Naquele momento eu soube que tinha que me separar e que merecia muito mais do que ele me oferecia”, expõe.

Com o auxílio de pessoas que, antes, eram próximas dela, arrumou coragem para denunciá-lo. “Foi uma batalha árdua, pois, mesmo com as evidências, eu tinha que reafirmar que as agressões aconteciam. Hoje a minha vida está melhor. Moro longe do agressor, meus filhos estão bem e eu finalmente encontrei um amor que é meu melhor amigo e fiel escudeiro”, comenta.

 

AUMENTO DE CASOS

Este é apenas um dos depoimentos entre as milhares de mulheres que já sofreram violência doméstica. Em Marechal Cândido Rondon, entre os anos de 2018 e 2021, houve o crescimento de 19% nos números de violência doméstica, conforme levantamento realizado pelo Centro de Análise, Planejamento e Estatística da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Paraná.

Já segundo dados da Secretaria Municipal de Assistência Social, o número de atendimento de casos de violência contra a mulher, seja física, sexual ou psicológica, aumentou 330% em Marechal Rondon. Antes da pandemia eram registrados 30 atendimentos mensais. Atualmente, esse número chega a 100 por mês.

 

CAUSAS E MOTIVOS

O isolamento social foi um dos fatores que contribuíram com este crescimento, aponta Adriana Taveira, coordenadora do Núcleo Maria da Penha (Numape), projeto de extensão da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), campus rondonense, que presta atendimento sociojurídico e socioeducativo às mulheres em situação de violência doméstica e vulnerabilidade social.

De uma forma geral, os motivos que culminam com a violência doméstica estão ligados à questão sociocultural, sugere Adriana. “Algumas condutas machistas vêm se perpetuando ao longo da história. O ‘modelo familiar’ da formação sociocultural brasileira estruturou-se na ideia de posse dos homens em relação às suas mulheres, retirando delas a capacidade de tomar decisões, restringindo-as ao ambiente familiar e às atividades domésticas”, expõe.

Ela afirma que isto resulta em um desequilíbrio nas relações interpessoais e sociais. “Sendo assim, problemas do cotidiano, como ciúmes, dinheiro, contas da casa e criação dos filhos levam a esses fatores através da violência, conforme padrões antigos e retrógrados”, salienta a coordenadora do Numape, ressaltando que “somente por meio da educação, reeducação, políticas públicas estruturadas e uma forte rede de enfrentamento é que será possível reverter essa realidade”.

Adriana frisa que a violência doméstica não se restringe apenas entre um casal. “A Lei Maria da Penha trata de toda e qualquer violência praticada contra as mulheres, independente de o autor ser um pai, irmão ou outro sujeito inserido no convívio social ou familiar das agredidas”, detalha. “A violência também não tem raça, escolaridade, profissão ou classe social”, acrescenta.

 

VIOLÊNCIAS MAIS RECORRENTES

A Lei Maria da Penha prevê cinco tipos de violências, sendo elas violência física, moral, psicológica, patrimonial e sexual. Não existe um padrão, porém, a violência psicológica é a que ocorre inicialmente, antes do autor partir para a violência física. Esta primeira caracteriza-se pelo ato de ofender, humilhar, ameaçar e intimidar, bem como debochar ou humilhar a pessoa na frente de amigos e familiares.

A patrimonial também é uma violência que ocorre com frequência quando o casal trabalha em parceria, caso em que a mulher, nessas hipóteses, não tem acesso aos valores recebidos pelo trabalho. “Ainda em relação à violência patrimonial, pode-se acrescentar que ela ocorre com certa frequência nas situações em que os companheiros (namorado ou consorte) retiram das mulheres seus bens, como o celular, ou provocam sua destruição, ou o mesmo em relação aos seus documentos ou pertences”, cita Adriana.

 

SILÊNCIO

As mulheres, muitas vezes, não têm o conhecimento de que estão em situação de violência, observa a coordenadora do Numape. Desta forma, a dor é sentida em silêncio. “O principal motivo é a impossibilidade de romper com o ciclo de violência gerada por várias questões. Dentre elas, o medo de denunciar e sofrer com possíveis retaliações, dependência financeira, falta de apoio por parte de familiares e amigos e também pela falta de um lugar adequado para abrigar-se”, enumera.

De acordo com Adriana, a violência doméstica também possui um padrão: o autor de violência, após cometer as agressões, pede desculpas e diz que vai mudar. “Então, muitas mulheres acabam cedendo e confiando numa possível mudança de postura, que ao final não ocorre e o ciclo continua”, ressalta.

 

FILHOS TAMBÉM SOFREM

Em um ambiente onde as mulheres vivem situações de violência, seus filhos também acabam expostos. Ou seja, assim como as mulheres carregarão consigo as marcas de uma vida violenta, seus filhos também carregarão. Depressão, ansiedade, síndrome do pânico e estresse pós-traumático são apenas algumas dessas marcas.

A coordenadora da Numape reforça a importância do acompanhamento psicológico. “Caso as vítimas não sejam acompanhadas pelo sistema de saúde, os riscos podem ser ainda maiores, ocasionando até em atentado contra a própria vida. Com isso, podemos dizer que a violência contra as mulheres também faz parte de um problema de saúde pública”, evidencia.

Ela diz que uma pessoa vítima de violência, seja ela qual for, desenvolverá problemas para se relacionar na sociedade, encontrará dificuldade para adentrar no mercado de trabalho e, ainda, corre o risco de cair em outro ciclo de violência. “Por isso, campanhas de prevenção e conscientização sobre o tema tornam-se tão importantes”, salienta.

 

QUANDO A CASA NÃO É UM LAR

Christina* é um exemplo de jovem que desde muito pequena teve que aprender a crescer em uma guerra a qual chamava de casa. “Doía ver a dor no rosto da minha mãe todas as vezes que meu pai decidia colocá-la em seu ‘devido lugar’”, recorda.

“Eu lembro que quando começava toda aquela gritaria, eu corria para o meu quarto e rezava para aquilo acabar o quanto antes”, menciona, contando que, muitas vezes, tinha medo de voltar para casa depois da escola. “Não sabia o que poderia encontrar quando chegasse em casa”, comenta.

As feridas cicatrizaram, mas a dor resiste ao tempo. Hoje, aos 22 anos e cursando Psicologia, ela vive dias de sol junto da mãe. No entanto, revela que ainda há ecos de uma criança machucada. “Eu faço terapia. É difícil esquecer as marcas deixadas na minha mãe ou em mim quando eu tentava defendê-la, mas com o tempo você aprende a lidar melhor com este sentimento”, considera.

 

DADOS

Conforme dados do Ministério Público do Paraná, ao longo do ano passado foram autuados no Estado 217 inquéritos com a imputação desse tipo penal, sendo que 154 dos casos já foram denunciados. No ano anterior, haviam sido 209 inquéritos autuados no Paraná, com 176 denúncias.

Só nos últimos três anos (2019 a 2021), segundo informações do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 3.998 mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil, com mais de 25 casos por semana ou ainda uma mulher morta a cada oito horas. Só no Paraná foram registradas 227 ocorrências no período analisado, com a média de um assassinato a cada cinco dias.

Coordenadora do Núcleo Maria da Penha, Adriana Taveira: “A violência doméstica possui um padrão, sendo que o autor, após cometer as agressões, pede desculpas e diz que vai mudar. Então, muitas mulheres confiam numa possível mudança de postura, que ao final não ocorre e o ciclo continua” (Foto: Divulgação)

 

DENUNCIE

O Numape atua junto à comunidade rondonense, com uma equipe multidisciplinar, desde 2016. Um ano depois foi iniciada uma série de ações, capacitações, palestras e seminários aos profissionais da saúde e segurança pública, além de oficinas socioeducativas e sociojurídicas. A partir de 2018, o Numape deu início ao atendimento sociojurídico, promovendo, se necessário, o encaminhamento jurídico aos órgãos de atendimento policial e judicial nos municípios da Comarca de Marechal Rondon (além do município-sede, Quatro Pontes, Pato Bragado, Entre Rios do Oeste, Nova Santa Rosa e Mercedes). Atualmente, também presta atendimento psicológico às assistidas.

Todos os serviços são ofertados de forma gratuita.

O Numape fica junto à Unioeste, mas o atendimento também é realizado pelo telefone/WhatsApp: (45) 99841-0892.

O Numape é o único serviço especializado exclusivo no atendimento as mulheres da comarca. Além dele, outros setores integram a rede de enfrentamento à violência doméstica: Delegacia de Polícia Civil, Polícia Militar, Ministério Público, Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) e Centro de Referência de Assistência Social (Cras).

* Nomes fictícios para preservar a identidade das fontes

 

O Presente

Clique aqui e participe do nosso grupo no WhatsApp

Copyright © 2017 O Presente