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Geral Alongamento ósseo

Médico rondonense ajuda a mudar história de vida de jovem com sequelas de acidente de trânsito

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Médico Claus Dietrich Seyboth, especialista em reconstrução e alongamento ósseo: “Reconstruir deve ser, sim, a primeira opção. Prós e contras devem sempre ser considerados antes de o paciente tomar a decisão. A pessoa precisa estar disposta a entender a complexidade do tratamento, as etapas envolvidas e o tempo necessário para se obter a reconstrução do membro e recuperação da função. A amputação deve ser a última opção” (Foto: Mirely Lins Weirich)

 

Em 05 de outubro de 2009, Lovani Kieling começou a escrever um dos maiores capítulos da história de sua vida. De aprendizado, descobrimento e, principalmente, recuperação.

Naquele dia, ela e uma amiga sofreram um grave acidente de moto na estrada que liga as cidades de Missal e Santa Helena. Quando foram ultrapassadas por outro motociclista, foram atingidas do lado esquerdo. “Isso é o que me contam, porque eu não lembro nada do acidente”, comenta.

A amiga e o outro motociclista faleceram. Lovani, apesar de não lembrar-se do acontecimento, teve sequelas das quais o tratamento ainda não terminou.

Foram cinco fraturas na região do olho esquerdo com descolamento da retina, fratura exposta em membro inferior D, envolvendo o fêmur e a tíbia, com perda óssea superior a nove centímetros, além de complicações com infecção óssea (osteomielite). “Fui encaminhada para um hospital de Foz do Iguaçu e depois de três dias na Unidade de Terapia Intensiva e 55 dias de internamento, o médico que me atendeu me disse que lá não havia mais nada a ser feito. Ele me disse que em Curitiba havia um médico que poderia solucionar o meu caso, para que eu pudesse voltar a andar, sem que minha perna ficasse curta”, relembra.

Com dificuldade para receber encaminhamento via Sistema Único de Saúde (SUS), o caso de Lovani foi parar na Justiça, que determinou ao município que ela residia o encaminhamento da jovem para tratamento em Curitiba. “Fui encaminhada para o Hospital Santa Casa de Misericórdia, mas lá me disseram que os profissionais que poderiam me atender estavam no Hospital Universitário Cajuru. Foi quando conheci o Dr. Richard Luzzi. Eu lembro como se fosse hoje. Aquela consulta durou mais de uma hora. Ele avaliou meu caso e a primeira cirurgia que eu fiz aconteceu em março de 2010. Até agora, já foram 22 procedimentos cirúrgicos”, expõe.

No Hospital Cajuru, Lovani também foi acompanhada pelo médico Claus Dietrich Seyboth, que assumiu seu caso cerca de um ano após sua chegada a Curitiba.

A jovem relata que, quando foi informada após o acidente que poderia voltar a andar sem ficar com a perna curta, faria o possível para alcançar este resultado, não importando o tempo ou dedicação necessários para alcançar o que fosse melhor para ela. “A cada 15 dias eu ia para Curitiba e devo muito da minha evolução ao Dr. Richard e ao Dr. Claus. As cirurgias eram muito complexas e a evolução muito lenta e eu o incomodava muito, porque era muito ansiosa nesse processo todo, queria logo estar bem e com a próxima cirurgia marcada. Chorava muito, tinha momentos depressivos e o Dr. Claus era sempre muito atencioso e paciente em todos os momentos”, recorda.

 

O MÉTODO ILIZAROV

O caso de Lovani, que teve uma perda óssea significativa no pós-trauma, é apenas um que exemplifica vários em que o método de alongamento ósseo, desenvolvido pelo médico russo Gavril Abramovich Ilizarov na década de 1950, devolve ao paciente a função osteomolecular e qualidade de vida.

O alongamento é um método para reconstrução óssea e correção de deformidades ortopédicas congênitas, ou seja, do nascimento, bem como traumáticas, provenientes de complicações pós-trauma, como deformidades/consolidação viciosa, pseudartroses, que ocorre quando o osso não se consolida, discrepância de comprimento, deformidades por degeneração (desgaste articular), infecção óssea (osteomielites) e deformidades combinadas (ósseas e de partes moles).

De acordo com Seyboth, especialista em reconstrução e alongamento ósseo que acompanhou o caso de Lovani por seis anos, esse método amplia de forma considerável as opções de tratamento das diversas patologias ortopédicas e traumáticas. “Em casos de osteomielite, por exemplo, a infecção não é sinônimo de antibiótico para o tratamento. Em infecção óssea, faz-se necessário a ressecção do osso necrótico, que, quando desvitalizado, não possui vascularização. Logo, ele não tem como receber antibióticos, pois este é carregado pela corrente sanguínea. O antibiótico tem efeito supressivo, mas não curativo”, explica o médico.

O osso necrótico se comporta como um lugar seguro para bactéria, uma vez que não consegue ser alcançado pelos métodos de defesa, como as células de defesa e antibióticos que dependem da circulação sanguínea. Seyboth menciona que essa falha óssea pode ser preenchida por meio do método de alongamento ou transporte ósseo, que tem a capacidade de contornar a necessidade de preencher grandes e pequenas falhas ósseas.

Ele diz que o fixador externo circular criado por Ilizarov consiste em um modelo de fixação externa versátil e de ampla aplicação para estabilizar segmentos ósseos, composto por um núcleo central, fios sob tensão para estabilização e suporte de carga, apoiados em um arco maior dando seu suporte externo. “Nesse sistema o paciente tem uma chave e faz os ajustes de acordo com a indicação médica, em geral, de 0,5 a 0,75 milímetros ao dia. Pode parecer pouco, mas a cada 20 dias, é feito 1,5 centímetro de osso”, revela Seyboth.

O crescimento ósseo ocorre em um ambiente de tração contínua, com preservação da biologia e elementos vasculares ao redor do osso. “Podemos comparar com uma árvore, na qual o segmento rígido, o tronco, é nutrido pelos elementos moles, as raízes, que são representados pelos tecidos moles ao redor do osso”, compara.

A montagem do fixador externo proporciona estabilidade com micromovimentos. O corte no osso (osteotomia) é feito de forma preservadora, com mínimo de corte de pele, marcação do segmento a ser osteotomizado com perfurações e, em seguida, finalizado da forma mais atraumática possível com osteótomo.

Nos primeiros dez a 14 dias de pós-operatório ocorre a fase chamada de latência, quando aguarda-se a cicatrização inicial. Depois, começa a fase do alongamento do osso propriamente dita, com pequenos ajustes conforme orientação de ritmo, quantas vezes por dia o quanto girar o ajuste. “O alongamento ósseo é monitorado de duas em duas ou três em três vezes por semana, observando a qualidade do osso que se forma, chamado osso regenerado. Após a fase do alongamento, vem a fase mais longa, que é a da remodelação óssea. A carga (deambular com peso) impõe o estímulo para que essa ‘nuvem de osso novo’ se remodele e consiga a transformação naquela massa amorfa em um osso rígido e regenerado”, detalha o médico.

 

Correção de deformidade congênita: mão torta radial (Fotos: Arquivo pessoal)

 

ALTERNATIVA À AMPUTAÇÃO

Seyboth cita casos de alongamentos ósseos que vão de um, dois e três centímetros até 15, 10 e 42 centímetros, tratamentos que inclusive evitaram a amputação de membros. “Nos casos de correções de deformidades ósseas, o alongamento com a criação dessa nuvem proporciona modelar o osso para correção do alinhamento e formato. O osso fica passível de ser modelado, conseguindo corrigir e obter formato e tamanho desejado para restabelecer a normalidade biomecânica osteomolecular”, esclarece.

O profissional lembra casos de pacientes que passaram pela avaliação de diversos outros especialistas antes de realizarem o alongamento ósseo em que a única indicação era a de amputação e com o tratamento de alongamento o membro foi mantido. “A indicação da amputação não está errada, porque o tratamento do alongamento ósseo, dependendo do caso, pode levar muito mais tempo do que a protetização após amputar uma perna, por exemplo. A pessoa precisa avaliar se ela está disposta a perder alguns anos da sua vida fazendo a reconstrução óssea e tendo esse processo de recuperação ou se ela quer amputar”, enaltece.

Em casos complexos, como deformidades, perdas funcionais e infecção óssea, normalmente tratamentos longos e por etapas são necessários. “Reconstruir deve ser, sim, a primeira opção. Prós e contras devem sempre ser considerados antes de o paciente tomar a decisão. A pessoa precisa estar disposta a entender a complexidade do tratamento, as etapas envolvidas e o tempo necessário para se obter a reconstrução do membro e recuperação da função. A amputação deve ser a última opção”, avalia Seyboth.

Para ele, amputar para reabilitar por meio da protetização é uma opção principalmente quando a reconstrução não é viável ou os métodos possíveis de salvação foram esgotados. “É preciso ponderar custo x benefício, envolvendo o tempo de tratamento, expectativa de melhora, resolução e função final. A compreensão da lesão, explicação do quadro de opções de tratamento, alinhar a expectativa à realidade são fundamentais para o sucesso do tratamento”, pontua o especialista.

O fator psicológico é uma importante questão a ser levada em consideração neste tipo de tratamento, seja em casos de pós-trauma ou congênita.

Seyboth cita o caso de um paciente que, após um grave acidente de moto, optou por fazer o alongamento ósseo. Depois de um longo período de tratamento e múltiplas internações, recuperação da cobertura da perna e reconstrução óssea com preenchimento da falha, necessitando ainda de 14 centímetros de alongamento, o paciente optou pela amputação. “A função recuperada seria inferior à expectativa, associada à dor crônica no membro que foi gravemente acometido. Hoje ele está protetizado e sente-se resolvido quanto ao trauma. Ele não fez a amputação no início, mas esgotou as possibilidades de tratamento para decidir pela solução radical da amputação. Mesmo quando o tratamento não alcança a expectativa de recuperação do paciente, o aspecto educacional do tratamento, unindo o emocional ao racional em uma decisão equilibrada, faz a pessoa se envolver mais com a protetização, deixando-a mais conformada com a perda do membro, porém com o ganho da vida”, ressalta Seyboth.

 

A montagem do fixador externo proporciona estabilidade com micromovimentos e tratamento permite o paciente caminhar e fazer atividades cotidianas, sendo a mobilização precoce incentivada

 

COMPLEXIDADE DO TRATAMENTO

No alongamento ósseo, afirma o médico, a dor é controlada. O ato de usar o fixador não causa dor. “Fazer um alongamento do fêmur, que tem massa muscular, é mais exigente do que na tíbia, que é literalmente só pele e osso”, compara.

Todavia, o tratamento permite o paciente caminhar e fazer atividades cotidianas como, inclusive, nadar em piscinas. “A mobilização precoce é incentivada. A pessoa não vai ficar imóvel e acamada. Ela precisa andar de muleta, de andador e é encaminhada para fisioterapia. No segundo ou terceiro dia após a cirurgia ela já sai do hospital com medicação via oral”, comenta.

Seyboth alerta que para quem realiza o alongamento ósseo não há milagre para potencializar ou encurtar o tempo de tratamento. Segundo ele, nenhum tipo de alimento, suplemento ou vitamina vai fazer com que o osso se forme mais rápido. “Não é porque você vai fazer um ‘carinho’ no osso que o tempo de tratamento vai avançar, mas a falta disso tudo pode interferir. Se o paciente tem uma alimentação adequada com proteínas e nutrientes, a formação óssea do tratamento está no caminho certo. Tabagismo e alcoolismo, no entanto, são o oposto. São extremamente prejudiciais ao processo ao ponto de não ser indicado para quem é tabagista pelo alto risco de não conseguir uma formação óssea de qualidade”, salienta.

Durante o tratamento, os pacientes também não podem utilizar anti-inflamatórios, já que estes medicamentos inibem a inflamação e, consequentemente, a formação do osso.

 

INDICAÇÕES

O tratamento de alongamento ósseo está disponível no Brasil pelo Sistema Único de Saúde (SUS), além de ser um procedimento coberto por diversos planos de saúde.

Seyboth explica que são diversas situações em que o método pode ser aplicado, porém, as mais vistas são a de pós-trauma, como em fraturas ocasionadas por acidentes de trânsito, as más-formações congênitas, as osteomielites e pós-tumor. “Pessoas de baixa estatura que querem recorrer a operações de alongamento ósseo por razões estéticas também podem realizar o alongamento ósseo. Não nos damos conta disso, mas pergunte a pessoas de 1,30 metro de altura, por exemplo, se é confortável sentar em cadeiras comuns ou se moldar a uma realidade de pessoas mais altas”, questiona o médico. “Pessoas com nanismo se beneficiam do alongamento do braço para poder fazer a higiene pessoal. Por terem as pernas arqueadas, também podem ter problemas no quadril e principalmente nos joelhos e isso não pode ser ignorado”, complementa.

O especialista ressalta, no entanto, que existem filtros a serem aplicados quando da realização da cirurgia.

A idade, aponta o médico, deve ser considerada para a realização do tratamento, tendo em vista o entendimento do tratamento e o envolvimento emocional. Ele diz que a formação óssea é de qualidade seja em crianças muito novas ou mesmo em idosos, sendo a qualidade óssea uma questão multifatorial e não a idade em si. “Já tive pacientes de dois até 94 anos. É claro que em um paciente de mais idade o osso não será como em um de 18 anos, mas a resposta de fazer osso, com tanto que não exista nenhuma comorbidade, uso de medicações que possam prejudicar ou que seja tabagista, é positiva”, relata.

O tabaco, conforme Seyboth, é o principal impeditivo para a cirurgia. De acordo com ele, a substância impede a formação do osso regenerado e a consolidação do mesmo.

 

Após um acidente de moto em 2009, Lovani Kieling resultou com cinco fraturas na região do olho esquerdo com descolamento da retina, fratura exposta em membro inferior D, envolvendo o fêmur e a tíbia, com perda óssea superior a nove centímetros, além de complicações com infecção óssea. Após dez anos e 22 cirurgias, ela comemora a recuperação: “Fico muito feliz com a evolução que eu tive”

 

O FIM DO TRATAMENTO

Dez anos após o acidente, Lovani considera que, de certa forma, ainda está em tratamento. Ela lembra que além do alongamento ósseo por várias vezes, usando sempre um fixador, fez dois enxertos ósseos, duas quadricepsplastias de Judet, correção de joelho varo valgo e ainda está com alguns problemas decorrentes do acidente. “Mas fico muito feliz com a evolução que eu tive. Nunca desisti, sempre quis fazer tudo que podia para ficar cada vez melhor. Encontrei muitas dificuldades nesse período que me fizeram evoluir como pessoa e hoje não reclamo mais como antes. Ainda pretendo terminar esse tratamento e a plástica que ainda não fiz”, enfatiza.

O tempo de tratamento de Lovani não é exceção. De acordo com Seyboth, o período de recuperação dos pacientes pode variar bastante, indo de dois a três anos até dez a 12 anos. “À medida que o paciente vence um degrau, a escadaria da expectativa se torna muito maior. Algumas vezes não é possível devolver a normalidade para o paciente, mas a maioria deles ficam satisfeitos com a melhora funcional e de qualidade de vida, que se traduz na melhora da autoestima”, finaliza o especialista.

Lovani teve uma longa jornada, mas depois de diversas batalhas e tratamentos complexos, o alongamento ósseo participou da elaboração da resposta de uma pergunta feita no meio do tratamento, quase como um desejo: “Dr. Claus, vou poder voltar a dançar?”

Sim. Hoje Lovani pode aproveitar a música.

 

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Nos casos de correções de deformidades ósseas, o alongamento proporciona modelar do osso para correção do alinhamento e formato (Fotos: Arquivo pessoal/Claus Dietrich Seyboth)

 

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