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Marechal Driblando o preconceito

Dia da Consciência Negra: rondonenses falam das experiências de viver em uma cidade essencialmente germânica

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(Fotos: O Presente)

Hoje, 20 de novembro, é comemorado o Dia da Consciência Negra. A data foi criada no ano de 2003, sendo incluída no calendário das comemorações escolares, mas somente no ano de 2011, através da lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011, é que a data foi oficialmente instituída em âmbito nacional. Nesse dia é feriado nos Estados de Alagoas, Amazonas, Amapá, Mato Grosso e Rio de Janeiro, além de cerca de outros mil municípios dos outros Estados.

Em alusão à data, o O Presente entrevistou a cabeleireira Tatiani Cattini e o diretor do Colégio Estadual Antônio Maximiliano Ceretta, professor Edvaldo Oliveira Souza, ambos de Marechal Cândido Rondon, que falaram um pouco sobre preconceito e como é ser negro na sociedade atual.

Assunto bastante recorrente na mídia, o preconceito contra negros é uma realidade no Brasil, bem como em países de origem europeia. O município rondonense, que tem grande parte de seus moradores descendentes de alemães, traz em sua cultura uma população predominantemente branca, e essa questão movimentou a discussão entre os entrevistados.

 

PRECONCEITO NA INFÂNCIA

Edvaldo diz que mora em Marechal Rondon desde os dois anos e não tem recordações de situações que tenham sido marcantes em sua vida em termos de preconceito racial. O professor comenta que em tempos passados era muito comum ouvir frases do tipo “isso é serviço de preto” ou “tinha que ser preto mesmo”, usadas de forma pejorativa, porém, ele relata que nunca sentiu diretamente preconceito por ser negro. Segundo ele, o fato de não se incomodar com isso auxiliou a compreensão da problemática.

O rondonense relata que sua mãe sempre lhe ensinou que ele tinha que trabalhar e ser honesto, sendo essa, na filosofia da matriarca, a chave para o sucesso. “Se aconteceu algum tipo de preconceito, foi ameno, pois não me abateu a ponto de me desestimular para seguir a minha vida. Nunca cheguei em casa chorando porque alguém falou alguma coisa nesse sentido”, reforça.

Já Tatiani vivenciou uma realidade um pouco diferente. Quando pequena, estudava em uma escola municipal e após ter mudado para um colégio particular rondonense, ela afirma ter sofrido preconceito. “Lembro que não gostavam do meu cabelo super volumoso, então eu enchia de creme e amarrava para deixar bem baixinho”, expõe, lembrando que chegou a ser chamada de “fundo de frigideira”.

A cabeleireira menciona que quando esse tipo de situação acontecia, ela chorava. “Hoje eu sou forte, mas eu aprendi a ser. Naquela época eu não era. Não contava isso para a minha mãe, pois tinha vergonha de ter passado por tal constrangimento. Então eu chorava e ficava calada”, declarou.

Já na adolescência, Tatiani começou a perceber que os comentários e opiniões dos outros sobre sua cor, cabelo e aparência não deveriam ser levados em conta. O estudo e a informação “me deram consciência de que eu sou igual a todo mundo e por que eu vou me importar com a opinião dos outros? Você vai ser julgado independente se você for branco, amarelo, azul, indiferente da cor”, afirma.

 

Diretor do Colégio Ceretta, Edvaldo Oliveira Souza: “Se aconteceu algum tipo de preconceito, foi ameno, pois não me abateu a ponto de me desestimular para seguir a minha vida. Nunca cheguei em casa chorando porque alguém falou alguma coisa nesse sentido” (Foto: O Presente)

 

MERCADO DE TRABALHO

Edvaldo recorda que iniciou no mercado de trabalho em Marechal Rondon aos 14 anos, em uma entidade representativa de empresários. Ele visitava algumas empresas e garante que nunca sentiu preconceito pela sua cor. “Eu creio que ali começou a minha autossuficiência”, ressalta.

Em 1992, iniciou sua carreira à frente de escolinhas de futebol, a partir das quais desenvolveu um trabalho com crianças das mais distintas raças, cores e credos. “Atendia crianças humildes até as que vinham de família tradicionais e com alto poder aquisitivo. Creio que o trabalho me fez ser respeitado na cidade, até o ponto de chegar a concorrer em um colégio e ganhar uma eleição para diretor, mesmo sendo negro. Penso que as pessoas não me olharam pela cor; me olham pela competência que eu mostrei ao longo da época de professor e da época de técnico em escolinhas”, enfatiza Edvaldo.

Tatiani, que teve seu primeiro emprego em um salão de beleza, local onde atua até hoje, diz que não sofreu preconceito e nem dificuldades na hora de ingressar no mercado de trabalho. “Gostaram de mim e eu tive a oportunidade de trabalhar. Ao longo do tempo, meu caráter foi sendo construído, fui ficando mais forte, mais empoderada e hoje sou muito bem resolvida em relação a isso”, destaca.

De acordo com ela, isso se deve ao seu crescimento profissional e atitudes. “Hoje não percebo preconceito por causa da minha cor, ou se alguém fala alguma coisa eu não me importo. Tenho muitas clientes de cabelo enrolado e elas se identificam comigo. Várias falam: ‘você tem seu cabelo enrolado então com certeza vai conseguir cortar o meu’. É tão legal ver hoje as pessoas se aceitando, deixando o cabelo enrolado, assumindo sua identidade. Acho maravilhoso! Fico triste quando alguém que tem cabelo enrolado e quer alisar”, enfatiza.

 

QUEBRANDO TABUS

Tatiani conta que, quando adolescente, nunca gostou do seu cabelo cacheado e volumoso. Por muitos anos, ela o alisou, por ter sofrido preconceito quando mais nova. Seu cabelo era algo incômodo e fazia com que ela não se aceitasse, levando em conta situações de preconceito sofridas na infância. Depois que começou a trabalhar em um salão de beleza, a rondonense comenta que foi para um evento em São Paulo e lá viu muitas outras mulheres negras que assumiram seus cabelos volumosos e isso fez com que ela se identificasse.

Depois disso, Tatiani não realizou mais alisamentos. “Quando eu deixei o meu cabelo ser como ele é, foi uma transformação imediata. Eu senti a minha identidade. É a minha cultura, minha raça, o meu cabelo é assim e pronto”, enaltece. “Quando eu vejo uma pessoa que tem preconceito de raça, ou qualquer tipo de preconceito, é tão triste. Como alguém pode sentir raiva de outro ser humano pela cor, pela orientação sexual, pelo país que nasceu?”, questiona.

 

Cabeleireira Tatiani Cattini: “Quando eu deixei o meu cabelo ser como ele é, foi uma transformação imediata. Eu senti a minha identidade. É a minha cultura, minha raça, o meu cabelo é assim e pronto” (Foto: O Presente)

 

EDUCAÇÃO COMO CAMINHO DE SUPERAÇÃO DO PRECONCEITO

Edvaldo aponta o estudo e a informação como as maiores armas contra o preconceito. “A educação não muda o mundo. A educação transforma as pessoas e elas, sim, mudam o mundo. Busquem o estudo. Com o estudo a pessoa vai abrir portas que sem ele não é possível abrir. Também é uma forma de eles se apresentarem na sociedade”, avalia. “Se chegar em Marechal hoje um juiz de Direito negro, todo mundo vai respeitá-lo. Ninguém vai olhar sua cor, mas, sim, sua posição. Talvez o negro tenha um pouco mais de dificuldade em conseguir seu espaço, mas depois que ele conquista esse espaço, as pessoas têm confiança nele. Às vezes as pessoas têm dificuldade em se posicionar, em ocupar o seu espaço. Tem muito mais pessoas que gostam dos negros do que as que não gostam. E se uma pessoa sofre preconceito por ser negra, o pobre também sofrer porque é pobre, a pessoa do interior porque fala errado, o idoso e assim por diante. Então, existem preconceito por diversos motivos”, expõe.

 

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