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Marechal Núcleo na Unioeste

Numape se consolida como espaço de enfrentamento à violência contra a mulher

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Coordenadora pedagógica, Carla Conradi, e advogada Fabíola Scheffel do Amaral, do Numape: “É necessário pensar mais políticas voltadas à saúde da mulher, tanto física quanto mental, e precisamos de um olhar atento e especializado na questão de violência contra as mulheres diante dos órgãos públicos” (Foto: O Presente)

 

Falar sobre violência contra a mulher não é uma tarefa fácil. Apesar de não ser uma prática recente, não muda a complexidade do tema. Nos dias atuais, essa violência está presente em todos os segmentos da sociedade, manifestando-se de diversas formas e gerando impactos e consequências sociais.

Mesmo com a realização de campanhas de combate a essa violência e da criação de mecanismos legais para coibir esses atos, como a Lei Maria da Penha, os números ainda são assustadores quando o assunto é feminicídio e violência doméstica.

Segundo o Ministério dos Direitos Humanos (MDH), que administra a Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência, o Ligue 180, foram registradas no primeiro semestre deste ano no Brasil quase 73 mil denúncias. O resultado é bem maior do que o registrado (12 mil) em 2006, primeiro ano de funcionamento da Central.

As principais agressões denunciadas são cárcere privado, violência física, psicológica, obstétrica, sexual, moral, patrimonial, tráfico de pessoas, homicídio e assédio no esporte. As denúncias também podem ser registradas pessoalmente nas delegacias especializadas em crimes contra a mulher.

Diante desse alarmante cenário de violência, se faz necessária a atuação de órgãos que desenvolvam estratégias efetivas de prevenção e de políticas que garantam o empoderamento e a construção da autonomia das mulheres, os seus direitos humanos, a responsabilização dos agressores e a assistência qualificada às mulheres em situação de violência. Vale destacar também a importância de as mulheres violentadas buscarem seus direitos perante a Justiça e denunciarem os agressores.

Em Marechal Cândido Rondon, município em que somente nos últimos dez anos foram registrados cerca de mil casos de violência contra a mulher, a rede de enfrentamento é composta por órgãos de segurança, Centro de Referência de Assistência Social (Cras), Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), Conselho Municipal da Mulher Rondonense (Commur), unidades de saúde e mais recentemente o Núcleo Maria da Penha (Numape) e busca dar conta da complexidade da violência contra as mulheres e do caráter multidimensional do problema, que perpassa diversas áreas, tais como a saúde, a educação, a segurança pública, a assistência social, a Justiça, a cultura, entre outras.

 

Violência e vulnerabilidade social

Criado em junho deste ano, o Núcleo Maria da Penha tem como objetivo a proteção da mulher, realizando atendimento sociojurídico e socioeducativo de mulheres em situação de violência e vulnerabilidade social. O programa de extensão desenvolvido pelo Laboratório de Pesquisa de Estudos de Gênero e História (Lapeg) do campus rondonense da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) tem o propósito de somar junto às entidades municipais da rede de combate e enfrentamento à violência, constituindo-se num espaço de aconselhamento e representação jurídica gratuito às mulheres.

De acordo com a coordenadora pedagógica do Numape, Carla Nacke Conradi, antes da criação do núcleo percebeu-se a necessidade de pensar de forma diferente a rede de enfrentamento à violência contra as mulheres no município, tendo em vista as dificuldades dos órgãos em lidar com as situações, além do alto índice de violência. “No ano passado, em uma mesa redonda sobre violência contra as mulheres, um escrivão da delegacia disse que um terço de tudo que se é trabalhado em Marechal Rondon, no âmbito da segurança pública, é Lei Maria da Penha, e isso é muito para um município como o nosso”, destaca.

O problema, na opinião de Carla, precisa ser trabalhado de uma forma sistemática, afirmativa e educacional. “E hoje os órgãos têm dificuldade em trabalhar com essas questões, pois faltam profissionais qualificados e ações mais afirmativas”, pontua.

Ela ressalta que o Numape é hoje um braço de auxílio ao combate da violência no município, tendo em vista que trabalha tanto com a assessoria jurídica quanto a parte pedagógica. “Isso significa que as mulheres não estão desassistidas e, além disso, não temos um limite de atendimentos, então as mulheres que buscam os demais órgãos da rede de enfrentamento vão à delegacia de polícia para fazer o boletim ou até Ministério Público buscando ajuda, eles encaminham para nós, e trabalhamos com o maior sigilo e privacidade”, afirma, acrescentando: “O Numape não é somente um escritório de advogados para atender essas mulheres, ele também é um espaço político de enfrentamento da violência”.

Além dos encaminhamentos articulados pelos demais órgãos, o núcleo trabalha com a demanda espontânea, ou seja, as mulheres podem procurar diretamente o Numape para o esclarecimento de dúvidas ou denúncias.

 

Acolhimento inicial

Muitas vezes, as mulheres estão fragilizadas com a violência sofrida pelo agressor e não conseguem denunciar, ou até mesmo nem sabem a quem podem recorrer nessas situações. Nesses casos, a advogada do Numape, Fabíola Scheffel do Amaral, ressalta que as mulheres que tenham dúvidas, que pensam em se desvencilhar desse ciclo de violência e não sabem como proceder, quais são os direitos, valores de advogados, entre outros, podem procurar o núcleo. “Algo que sempre prezamos no núcleo é a autonomia das mulheres, então jamais vamos impor que elas façam uma medida protetiva ou entrem com ação judicial. Trabalhamos com o poder de decisão dessas mulheres, sua autonomia e buscamos esclarecer sobre a Lei Maria da Penha e os seus direitos”, menciona.

 

Todas as classes

Conforme a advogada, o núcleo atende mulheres de todas as classes sociais. “Depois do acolhimento inicial, temos o atendimento jurídico, que vai ser direcionado às mulheres que estão dentro dos requisitos, para que possamos, se necessário, entrar com ação judicial, e para isso precisamos do requisito econômico, nos parâmetros da Defensoria Pública quanto aos advogados, já que há custos judiciais”, explica.

Fabíola relata que a partir da escuta qualificada realizada com as mulheres se percebe que uma das principais dúvidas que as levam a buscar o órgão está relacionada à guarda dos filhos. “Elas sentem muito receio de perderem os filhos, pois a maioria dos homens, nesses casos, se aproveitam da ignorância dessas mulheres, e aqui digo no sentido de não terem consciência dos seus direitos, e falam que vão pegar os filhos e fugir. Eles falam que têm o direito de ficar com os filhos e elas nunca mais os verem”, comenta.

Outra questão é o divórcio e de como fica a questão patrimonial e a partilha de bens. “Nós recebemos mulheres de classe social alta, então muitas delas têm receio em relação aos bens, pois em muitos casos possuem patrimônio que herdaram e acreditam que o companheiro vai ficar com tudo e elas sem nada”, conta a advogada.

 

Além da agressão física

É grande o número de mulheres vítimas de violência psicológica por parte de seus companheiros. Na maioria das vezes, elas sofrem em silêncio, já que o medo e a vergonha as impedem de falar sobre o assunto.

Socialmente, a violência psicológica é considerada um problema menor. Em muitos casos, a própria vítima não a reconhece como uma agressão. Assim como a violência física, a violência psicológica também é capaz de provocar ferimentos profundos, não no corpo, mas na alma, o que a torna difícil de ser comprovada e faz com que a vítima desse tipo de ação se cale e sofra em silêncio.

Conforme Fabíola, esse tipo de violência é o mais relatado nos atendimentos realizados pelo Numape. “Por isso é importante ressaltar que as medidas protetivas de urgência não estão atreladas ao cometimento de um delito ou ainda à lesão corporal/violência física. A violência psicológica já é suficiente para se requerer a medida protetiva, inclusive nós já conseguimos isso através do núcleo.

Além da violência psicológica, casos de violência moral, patrimonial, como retenção de documentos, proibição de acesso ao trabalho e estudos, e a violência física também são corriqueiros nos atendimentos. “E os relatos vão desde tapões até coisas mais graves no sentido da integridade física”, menciona.

 

Cadeia da violência

Carla explica que a violência psicológica tem mais incidência porque ela vem atrelada às outras formas de violência. “Nas pesquisas que fizemos na delegacia, na Unidade 24 Horas e nos postos dos bairros, coletamos um dado número de violências, de uma forma quantitativa e depois fomos analisando de uma forma qualitativa, no sentido de pensar a partir de discussões teóricas sobre a própria violência. O que percebemos fazendo a análise dos dados de cinco anos antes da Lei Maria da Penha e cinco anos depois é que a violência mais relatada é a física e que também é o estopim de quando a mulher vai buscar ajuda”, destaca.

No entanto, a coordenadora pedagógica diz que a partir dos dados de mulheres que denunciaram violência psicológica, somados aos de violência física, a primeira é muito maior. “Uma violência física jamais acontece sem uma violência psicológica, seja antes ou durante o ato de agressão”, enaltece.

 

Políticas públicas

A violência contra a mulher revela uma prática enraizada e de difícil combate por diversas razões, como, por exemplo, vergonha por parte das vítimas, heranças culturais, dependência da vítima em relação ao agressor, dentre outras. Uma ferramenta para mudar essa realidade é a implementação de políticas públicas com foco ao combate desse tipo de violência, todavia, neste quesito Marechal Rondon ainda apresenta um grande déficit e que vem de encontro aos altos índices de violência. “Não temos um delegacia da mulher e interpretamos que isso aconteça pelo número de habitantes, no entanto, deveria ser considerado o índice de violência. Além disso, precisaríamos de uma casa lar para que as mulheres pudessem ter um lugar para ir quando saírem de casa ou até que se conseguisse a medida protetiva, que demanda um certo tempo”, enfatiza Carla.

A coordenadora pedagógica do Numape também destaca a necessidade de um atendimento mais humanizado na Delegacia de Polícia Civil em relação às mulheres e a implementação da Patrulha Maria da Penha. “A patrulha seria essencial até mesmo para desafogar a Polícia Militar dessas questões”, salienta, enaltecendo também a importância de se ter um juizado especial da lei Maria da Penha.

Outro ponto levantado por Carla diz respeito ao fato de as mulheres não terem meios de fazer o exame de corpo de delito no município e muitas não conseguem ir para o Instituto Médico Legal (IML) de Toledo. Em sua visão, deveria haver uma forma de organizar isso dentro da rede de enfrentamento. “É necessário pensar mais políticas voltadas à saúde da mulher, tanto física quanto mental, e precisamos de um olhar atento e especializado na questão de violência contra as mulheres diante dos órgãos públicos”, frisa.

 

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