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Marechal

Respeito às formas da natureza

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Seja por apreciar o sabor, ou pela necessidade de manter uma alimentação balanceada, poucas pessoas que se servem das folhas verdes na hora do almoço se questionam de onde vem e como são cultivadas as saladas que são colocadas com capricho no prato diariamente. 

Na propriedade da família Ames, na Linha Volta Gaúcha, interior de Entre Rios do Oeste, as verdinhas que não recebem nenhuma gota de agroquímicos estão saindo de uma horta um tanto quanto peculiar, que fica logo na entrada da propriedade de pouco mais de cinco hectares de terra.

O diferencial da chácara está em um cantinho, que conta com alguns metros quadrados com canteiros circulares e hortaliças de ciclo curto: uma horta em mandala. Do Sítio dos Ipês saem diversos produtos da agricultura orgânica, entre frutas, legumes e verduras, que servem para o consumo próprio da família e também para a venda, que é feita tanto para os clientes que já se tornaram fãs dos produtos da família Ames, quanto para a merenda escolar do município. “Começamos a plantar algumas verduras para consumo próprio e logo iniciei esse sistema de mandala, e depois aumentamos a produção para venda”, conta José Artêmio.

A ideia dos pequenos produtores é sempre diversificar, colocando além das hortaliças, plantas medicinais e flores nas mandalas. “Tudo isso com a ideia de melhorar a qualidade de vida, trazer uma outra energia, um equilíbrio para esse círculo”, complementa Rejane.

Para cuidar da propriedade, o casal recebe a ajuda do filho mais novo, João Carlos, de 17 anos. Eles também têm mais um filho, José Antônio, de 18, que já trabalha fora e ajuda a complementar a renda da família.

No restante do sítio, a família cria algumas galinhas, suínos e gado, mas apenas para consumo próprio, que são alimentados pelo milho crioulo que também é cultivado, moído e consumido como fubá pela família e uma parte vai para a merenda escolar. “Quase todos os itens para a nossa alimentação temos aqui, compramos poucas coisas”, comenta Rejane.

 

Filosofia de vida

Há cerca de um ano, a família Ames recebeu a certificação de produtores orgânicos, os únicos que fornecem alimentos 100% livres de adubos químicos para a alimentação escolar entrerriense.

A conversão de produção convencional para a orgânica no Sítio dos Ipês, no entanto, vem acontecendo há muito tempo, quando a família passou a adotar práticas ecológicas para produzir os alimentos. “Adotamos isso como uma filosofia de vida, para termos um alimento saudável e começamos a trabalhar para isso em primeira linha”, explica Artêmio.

Este é o quarto ano que nenhuma gota de inseticida entra na propriedade. Pelo menos não pelas mãos dos produtores. Apesar da barreira verde que envolve a propriedade, eles afirmam que as chácaras que rodeiam o sítio ainda utilizam o método de cultivo convencional das culturas como soja e milho. “A barreira é mais simbólica do que efetiva, mas precisamos ter para tentar proteger”, enaltece o produtor. “É uma luta nossa. Temos a associação de produtores orgânicos, mas somos o único certificado e vários não querem se certificar, não querem abrir mão de usar químicos, não querem fazer barreira porque dá bastante trabalho e olham bastante o lado financeiro”, acrescenta Rejane.

O casal diz que já teve prejuízo em diversas oportunidades, quando perderam várias verduras para as pragas apesar das várias tentativas de manejo. “Talvez seja esse risco que as pessoas não estão dispostas a correr porque só visam lucro”, pontua Artêmio.

O casal aponta que hoje não é possível sobreviver apenas da venda para a merenda escolar e da feirinha que fazem todos os sábados, entregando os produtos de porta em porta, por isso os dois trabalham fora: ela como empregada doméstica e ele como pedreiro. A necessidade do ganho extra também vem dos investimentos que estão fazendo no plantio de árvores frutíferas, no qual o retorno deve chegar entre dois e três anos. “Mas continuamos vivendo assim porque estamos tentando recuperar o equilíbrio, para que as pragas não cheguem a causar dano e para que a gente consiga produzir de forma mais equilibrada”, garante Artêmio.

 

Respeito às formas da natureza

Mandala tem origem do sânscrito (língua indo-árica) e significa círculo, porém, também possui outros significados, como círculo mágico ou concentração de energia. Universalmente, a mandala é o símbolo da integração e da harmonia.

De acordo com o coordenador do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural Sustentável da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), professor Wilson Zonin, diversas ideias norteiam o cultivo em mandalas, contudo, a principal delas é a de que estamos imitando a forma do planeta e a natureza, que tem este formato, e a agricultura às vezes tenta contrariar esses princípios. “Coloca-se nos círculos externos plantas maiores, que vão proteger as plantas internas”, explica o professor.

A horta em mandala nada mais é do que um jardim em círculos concêntricos que respeitam a agricultura ecológica, com o princípio de copiar o desenho da natureza, por isso, como nela tudo é arredondado, os canteiros retos das hortas tradicionais foram reformulados. “O desenho também favorece a iluminação, protege a entrada de vento e organismos estranhos, além de ter possibilidade da diversificação de espécies, em que uma auxilia a outra como repele, então também há essa ideia de proteção”, ressalta.

Misturar as espécies tem um papel fundamental neste tipo de produção, pois quanto maior a diversidade, maior o equilíbrio ambiental, menor o índice de pragas e menor a necessidade de intervenção. “O projeto ecológico de agricultura se adapta bem à mandala e a mandala se adapta bem ao projeto ecológico de agricultura”, enfatiza Zonin.

 

Boas práticas

Os produtores orgânicos do Sítio dos Ipês estão reproduzindo a técnica que também tem ganhado espaço em algumas propriedades e instituições de ensino de Marechal Cândido Rondon. Em 2016, alunos de um projeto de extensão do curso de Agronomia da Unioeste aceitaram o desafio de implantar uma horta em mandala no Centro de Atendimento à Família (CAF), que até hoje é mantida pelos colaboradores do local. “Trabalhar e se envolver em uma construção dessas é algo motivador. Percebi no grupo do projeto de extensão, que envolveu cerca de 15 acadêmicos, que foi realmente um desafio”, conta Zonin.

O professor, que coordenou o trabalho na instituição, comenta que o grupo estabeleceu a construção da mandala como um trabalho coletivo diferente, que estivesse de acordo com a maneira de pensar a extensão rural e o trabalho de educação rural. “Acabou sendo uma associação de mandala com o A de Agronomia, porque nos caminhos da mandala fizemos os canteiros tentando colocar essa forma, essa presença da Unioeste no local”, explica.

A mandala conta com um sistema de água encanada no centro para a irrigação, que também é uma forma de melhorar aproveitamento dos recursos naturais, sem desperdícios. “Fizemos todo o preparo correto do solo, com manejo adequado, com boa adubação orgânica e misturamos as plantas, colocando espécies diferentes, de modo que uma auxilia a outra, que já é um pensamento da agroecologia”, cita.

Pela forma de concepção do projeto e pelo não uso de adubos químicos, transgênicos e agrotóxicos, a mandala é considerada completamente agroecológica. “A ideia foi mostrar que é possível produzir alimentos saudáveis da forma que a lei da alimentação escolar estabelece, respeitando as formas da natureza. Foi muito trabalhoso, mas também motivador”, enfatiza Zonin.

Os alunos da instituição hoje também prestam apoio para outras escolas da rede municipal de ensino rondonense para manter as hortas em mandala, ensinar a melhor forma de plantio das hortaliças e como fazer o manejo do solo e das plantas. A intenção é, ainda, de tirar do papel o projeto de uma horta em mandala que terá apenas plantas medicinais em uma das Unidades Básicas de Saúde rondonenses, para que a comunidade também possa se beneficiar da iniciativa.

Na propriedade de Herbert e Hildegart Bier, um dos produtores orgânicos certificados do município, os alunos do Colégio Evangélico Martin Luther também participaram da montagem de uma horta em mandala, quando também aprenderam sobre a produção orgânica de alimentos na chácara do produtor.

 

Alimentação é estratégica

Zonin avalia que como sociedade, estamos vivendo em um tempo em que a vida começa a se tornar mais importante do que a economia, por isso, iniciativas como a das famílias Ames e Bier, além das instituições de ensino rondonense, representam a mudança de modelo de desenvolvimento que está ocorrendo no mundo. “Embora ainda estejamos sendo atropelados pela ideia economicista e produtivista”, critica.

A cada dia, o modelo que coloca a vida como eixo central ocupa mais espaço e, de acordo com o professor, nele a alimentação é algo estratégico. “Nós somos o que comemos. Se não sabemos o que comemos, não sabemos o que nós somos”, aponta. “Uma das questões muito importantes da sociedade atual é saber o que estamos comendo e essa cidadania ambiental de saber a importância da vida, de cuidar das vidas humanas, nós procuramos estimular”, enfoca.

Na visão de Zonin, esses projetos mostram que cada vez mais as pessoas estão se dando conta que a humanidade está morrendo por conta de doenças relacionadas ao uso de agrotóxico e água contaminada, por exemplo. “A volta aos produtos naturais, ecológicos e saudáveis é uma questão de cidadania e na medida em que as pessoas avançam na conquista dessa cidadania, elas conseguem dar mais importância para isso”, frisa.

A produção ecológica, na visão do professor, também é hoje uma boa fonte de renda quando bem pensada e planejada, todavia, o foco principal não deve ser o retorno econômico, mas, sim, aliar as questões econômicas, sociais e ambientais à qualidade de vida. “Isso é importante para a nossa saúde e para superar a amarra deste modelo que cada vez nos condiciona a comer com menos diversidade. Se dependermos da alimentação a partir da lógica da indústria agrícola e daqueles que dominam as sementes, vamos cada vez mais estreitar a nossa base de alimentação”, alerta. “Quem pode dar a diversidade e a ampliação, que foi importante para a evolução da sociedade, é a agricultura familiar orgânica”, garante Zonin.

 

Da mandala para o prato

A família Ames é a única que produz alimentos orgânicos que são destinados à merenda escolar de Entre Rios do Oeste, porém, a nutricionista responsável pela alimentação escolar, Josiane da Silva Thomas, afirma que há diversos outros produtores adeptos à produção agroecológica que fornecem as frutas e verduras, bem como o frango e ovos caipiras, que vão para o prato das crianças diariamente. “Preconizamos alimentos com o mínimo possível de defensivos químicos. O município está incentivando para que mais produtores consigam a certificação orgânica, entretanto, sabemos que o processo de certificação é burocrático e demanda de várias etapas e de um acompanhamento constante, que hoje já acontece pela visita de uma técnica que presta a assistência”, explica.

As crianças atendidas na Escola Municipal e no Centro Municipal de Educação Infantil hoje contam com cerca de 70% da compra dos alimentos oriundos da agricultura familiar. Conforme Josiane, ainda não é possível chegar à totalidade dos produtos adquiridos pela carência de fornecimento dos itens em algumas épocas do ano. “Mas entre não ter nenhum alimento e ter esses 70% já é um ganho imenso para as crianças. Sabemos que algumas têm carências na alimentação que têm em casa, então acabam fazendo a melhor refeição do dia na escola”, destaca.

A recusa pela merenda, diz, é rara, mas acontece por alguns estudantes que não trazem o hábito de consumir verduras, legumes e frutas de casa. “Mas uma vez que estou aqui na escola e acompanho também o dia a dia da creche o trabalho pode ser dinamizado diferente. Os professores abrem a sala de aula para eu conversar com as crianças, no intervalo também é possível fazer um trabalho individual e informal com aqueles que resistem e com esses ajustes eu consigo ganha-los”, comemora.

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