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Bragadense portador da Síndrome de Asperger aborda desafios e superação no Dia Mundial de Conscientização sobre o Autismo

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Maurício Alves de Moraes, morador de Pato Bragado, funcionário público e portador da Síndrome de Asperger: “Muitas vezes eu me sinto uma pessoa fria, distante e alienada, isso me causa um tremendo mal-estar. Eu achava que a empatia era sentir a dor do outro, mas, depois da minha filha Roma tenho sentido que empatia é a arte de amar através dos gestos” Fotos: Divulgação)

“Largar tudo” e ir escrever um livro desejado e imaginado. Isso aos 14 anos, enquanto cursava a 8ª série do Ensino Fundamental, na cidade de Porto Murtinho, no Mato Grosso do Sul. Foi assim que as pessoas ao redor de Maurício Alves de Moraes, hoje morador de Pato Bragado, desconfiaram que havia ali algo diferenciado.

Com notas beirando o dez em todas as matérias e comportamentos somente um pouco “fora da curva”, ele conta que, repentinamente, aquilo já não mais o completava e precisava avançar em outras áreas. “Larguei mão de tudo e fui escrever um livro sobre socialismo e capitalismo, algo que não tem nada a ver”, relembra.

O comportamento de Maurício durante a infância, diz ele, dava alguns sinais, mas a mãe, na época, não sabia do que se tratava. “Ela pensava ser superdotação ou coisas do gênero. Aprendi a ler, autodidata, próximo aos dois anos de idade. Entrei na escola sabendo ler e escrever aos cinco anos, de forma autodidata. Em 2014, diante da minha nova definição de prioridades, fui avaliado por um psicólogo e, depois de passar por uma junta psiquiátrica, tive constatada a condição de portador da Síndrome de Asperger”, conta ele ao Jornal O Presente.

A Síndrome de Asperger já foi parte do Transtorno do Espectro Autista (TEA) e hoje é tida como um dos distúrbios relacionados. Nesta sexta-feira (02), comemora-se o Dia Mundial da Conscientização sobre Autismo e o morador de Pato Bragado desde 2017 conversou com a reportagem um pouco sobre o transtorno.

 

SURPRESAS EM UM NOVELO

Com a falta de conhecimento, não raro as pessoas pensam que um transtorno psicológico pode acabar, de certa forma, impondo limites àqueles que portam a condição. Maurício, por sua vez e testemunho, frisa que “não é um limitador. “A minha limitação está na minha cabeça. Quando deixo a mente fluir não há limitações, é mais da mente do que propriamente do autista”, afirma.

A vida, segundo ele, acontece normalmente, apenas com altos e baixos. “Em alguns momentos você está lendo artigos e em outros você está postando memes no Facebook. É uma coisa bem contraditória. Noto que as pessoas têm uma linha e quando você puxa o novelo, a linha não tem nó, você simplesmente vai puxando. No caso do autista, dependendo do grau de interferência no espectro, esse novelo é cheio de surpresas”, compara.

 

FAMÍLIA E RELAÇÕES

O sul-mato-grossense tem 32 anos de idade e é funcionário público em Pato Bragado, tem duas graduações, pós e MBA. Avaliando a trajetória, ele reconhece o papel da família durante os momentos de precisão. “Minha família foi, de uma forma ou de outra, a primeira a diagnosticar esse meu lado, a questão de olhar no olho, a interação, a empatia”, ressalta, mencionando que é possível conviver bem com o autismo.

Os pais dele são falecidos e, sobre a mãe, revela: “Ela não morreu, como dizem. Para mim, ela acabou e assumiu o papel de senhora do meu destino”, enaltece.

Atuando como assistente administrativo, Maurício garante que gosta do que faz e sente admiração pelas pessoas com que convive. “Sinto que isso é mútuo”, observa. A condição de portador da síndrome não é um fato amplamente conhecido pelas pessoas com quem ele lida diariamente.

Em decorrência do interesse profundo e específico, ele menciona que os vínculos criados são diferenciados, por vezes. “Você vai tendo proximidade com pessoas mais velhas, com os mesmos interesses e assuntos prediletos que você. O gosto por assuntos profundos, por questões polêmicas para alguns, pela complexidade é um pouco do que norteia a nossa vida”, sintetiza.

 

PRECONCEITOS

Questionado sobre como é ser portador da doença em uma cidade menor, onde, por vezes, não há tantas informações divulgadas sobre o TEA, Maurício é direto: “Em cidades grandes ou pequenas, o problema é o mesmo”, reflete.

Para ele, os preconceitos ainda existem e são piores que quaisquer outros males. “O preconceito é pior, porque vem do total desconhecimento, do medo, da incerteza. O autismo sofre com esse preconceito, mas não só ele: tudo o que é diferente. Com 32 anos hoje e tudo o que vivi, a gente tem evoluído muito. Há estudos muito importantes na área que são realizados atualmente”, informa, acrescentando que um dos principais meios de pesquisa deve ser a sala de aula.

 

Maurício e a falecida mãe, durante a formatura dele em Licenciatura em Letras, em Assis Chateaubriand, em 2018: “Minha família foi, de uma forma ou de outra, a primeira a diagnosticar esse meu lado, a questão de olhar no olho, a interação, a empatia”

 

“AMAR ATRAVÉS DO GESTÃO”

O bragadense de coração compartilhou com a reportagem que, recentemente, recebeu a notícia de que se tornaria pai. A pequena Roma ainda está aguardando seu momento, mas, para ele, a sensação já é exultante. “Durante muito tempo eu acreditava que nós, autistas, não pudéssemos ter empatia. Muitas vezes eu me sinto uma pessoa fria, distante e alienada, isso me causa um tremendo mal-estar. Eu achava que a empatia era sentir a dor do outro, mas, depois da minha filha Roma, tenho sentido que empatia é a arte de amar através dos gestos”, enaltece.

A empatia, mais que um ato espelhado, no entendimento dele, é mostrar para a outra pessoa que você se importa. Para os autistas, explica ele, gestos, abraços, toques e beijão são difíceis de acontecer. “Uso da minha condição humana para satisfazer a condição humana dela. Estou abrindo parte de mim para completar a parte dela e acho que isso vai ser uma constante na minha vida. Não vou conseguir amar ela de outra forma que não seja demonstrando, gesticulando, mostrando para ela o quanto eu a amo”, conclui.

 

O QUE É O AUTISMO?

O autismo, ou melhor dizendo, o Transtorno do Espectro Autista (TEA) se caracteriza pelo déficit no desenvolvimento neurológico, envolvendo prejuízos cognitivos, na comunicação, dificuldades na socialização e comportamento restrito e repetitivo, porém, tudo isso em diferentes níveis. “As dificuldades vão de leves a severas e as necessidades são específicas. Cada pessoa precisa de um suporte diferenciado para adquirir autonomia”, explica a psicóloga da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) de Marechal Cândido Rondon, Ilse Teresinha Fontana.

Mesmo que se digam dificuldades, Ilse ressalta que não se tratam, necessariamente, de problemas na aprendizagem. “Embora muitos indivíduos com TEA apresentem deficiências cognitivas significativas, outros apresentam QI acima da média”, destaca.

 

CAUSAS DA TEA

Estudos apontam as causas do TEA são associadas a fatores genéticos, presente em 97% a 99% dos casos, e hereditários, em 81%. Além disso, a psicóloga menciona que entre 18% e 20% possuem causa genética somática, não hereditária e de 1% a 3% são de causas ambientais uterinas. “O TEA é quatro vezes mais comum em meninos do que em meninas”, pontua.

 

SENSIBILIDADE

De acordo com a psicóloga, a sensibilidade sensorial das pessoas com TEA é maior, podendo ser mais ou menos intensificada. “Está relacionada ao som, à luz, às texturas e, por isso, costumam evitar aglomerações ou ambientes com estimulação visual e auditiva. Outros indivíduos são subsensíveis, podem não sentir dor ou temperaturas extremas, nem mesmo chorar quando machucam-se”, expõe, emendando que o Transtorno Global do Desenvolvimento e a Síndrome de Asperger também estão classificados dentro do TEA.

 

Psicóloga da Apae de Marechal Rondon, Ilse Teresinha Fontana: “É preciso saber ouvir, procurar entender o que a pessoa com TEA está tentando comunicar. Tentar saber o que antecedeu a crise, que pode ser de choro, agressividade e outros, pois a manifestação destas emoções e comportamentos pode ser uma forma de dizer daquilo que não consegue comunicar”

 

DIAGNÓSTICO

Ilse reforça o papel da família no momento de diagnosticar o transtorno, visto que os primeiros sinais são dados logos nos primeiros meses de vida da criança. “Os sintomas podem surgir antes dos três anos de idade, mas, aos 18 meses, já é possível fazer o diagnóstico. A criança pode apresentar desenvolvimento dentro do esperado até os 18 a 24 meses, chegando a falar e, em seguida, parar de ganhar novas habilidades e/ou começar a perdê-las”, pondera ela, acrescentando que é preciso prestar atenção.

Alguns dos sintomas são, segundo a profissional, evitar o olhar, isolar-se; alinhar objetos; ser muito preso a rotinas; não brincar com brinquedos de forma convencional; fazer movimentos repetitivos sem função aparente; não falar ou não fazer gestos para mostrar algo ou puxar e conduzir as pessoas pela mão para levar até o objeto desejado; repetir frases ou palavras em momentos inadequados, sem devida função; não compartilhar seus interesses e atenção; ter interesse restrito ou hiperfoco; não imitar e não brincar de faz-de-conta; fazer movimentos incomuns com os dedos perto dos olhos; incomodar-se com os ruídos do dia a dia, odores, sabores, texturas, luzes e/ou cores; não atender quando é chamada pelo nome; balançar o corpo e outros.

 

RELAÇÕES PESSOAIS

Quando as pessoas com TEA são entendidas dentro de seu quadro, podem ser inclusas assertivamente nos diferentes setores da sociedade. “Devido ao que foi mencionado, as pessoas com o transtorno podem ter dificuldades para se comunicar. Em indivíduos que desenvolvem uma fala adequada, pode existir uma inabilidade para iniciar ou manter uma conversa. São resistentes às mudanças e costumam manter rotinas, rituais e preocupam-se excessivamente com determinadas atividades, assuntos ou compromissos”, expõe.

Segundo ela, como tudo que exige mudanças, a pandemia refletiu em alto nível na vida das pessoas com o transtorno. “Eles se desestabilizam, precisam de tempo e/ou ajuda para se reorganizarem”, pondera.

 

DIAGNÓSTICO PRECOCE

O TEA, conforme Ilse, não possui uma cura. “Quanto mais precoce é o diagnóstico, mais eficiente será o tratamento”, resume.

Ela ressalta que o conhecimento da condição contribui para que a inserção social e a aquisição da autonomia aconteçam da melhor forma possível. “A intervenção pode ocorrer mesmo antes do diagnóstico conclusivo e objetiva estimular e auxiliar no desenvolvimento das potencialidades adaptativas, de comunicação e interação”, pontua.

 

RESPEITO

A psicóloga garante que o tratamento ameniza os sintomas, mas que o respeito pelo processo é ainda mais fundamental. “É preciso saber ouvir, procurar entender o que a pessoa com TEA está tentando comunicar. Tentar saber o que antecedeu a crise, que pode ser de choro, agressividade e outros, pois a manifestação destas emoções e comportamentos pode ser uma forma de dizer daquilo que não consegue comunicar”, observa.

Neste dia 02 de abril, Dia Mundial da Conscientização sobre o Autismo, Ilse enaltece a importância de as pessoas conhecerem e entenderem melhor as necessidades das pessoas com TEA. “Todo empenho na luta por uma causa pode trazer grandes benefícios, pois promove questionamentos, reflexões, mudanças e conquistas”, assegura, acrescentando que a Lei 12.764, de 2012, que instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtornos do Espectro Autista, e a Lei 13.977, de 2020, que institui a Carteira de Identificação da pessoa com TEA, foram conquistas importantes para o transtorno.

 

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