Variedades Menino é fera!
Oito anos após ataque de tigre no zoo de Cascavel que lhe cobrou o braço direito, Vraja ostenta título de campeão brasileiro de natação
Nesta quinta-feira (30) faz oito anos de um dos episódios mais midiáticos da história de Cascavel. Na data homônima, em 2014, o menino Vrajamany Rocha, aos 11 anos de idade, visitava com o pai o Zoológico Municipal.
Brincou com o leão, saltou na grade do tigre Hu e buscou proximidade com os animais. Dali a pouco a cena que rodou o mundo: Hu agarrou o braço esquerdo do menino. A bocarra do tigre custou a amputação do membro. Socorrido, o menino encontrou forças para dizer: “não façam mal ao tigre”.
Hoje, aos 19 anos de idade, o Pitoco encontrou Vraja, como é mais conhecido em Uberlândia (MG), onde vive, ou “menino do tigre”, como ficou conhecido internacionalmente, famoso por outra circunstância: o braço que lhe restou trouxe muitas medalhas, mais de 100.
Vraja coleciona títulos na natação. Foi campeão brasileiro paraolímpico sete vezes e agora treina de quatro a seis horas por dia para obter o índice e disputar aos Jogos Paraolímpicos de Paris, em 2024.
“Quero ser campeão mundial paraolímpico”, disse Vraja na entrevista concedida à apresentadora Olga Bongiovanni, na CBN.
A reportagem da revista é testemunha da aplicação de Vraja. As fotos que ilustram esse texto exigiram uma batalha da editoria contra o tempo. O “menino do tigre” não para nunca.
Origens
O menino estava em Cascavel naquela ocasião do acidente para “devolver” o irmão que havia lhe visitado nas férias.
O nome bem diferente, Vrajamany, vem de algo místico. Um tio dele, monge hinduísta, empenhou-se em converter toda a família para a religião asiática.
Não obteve o intento, mas conseguiu batizar o menino com o “Vraja” que dá nome a uma região sagrada da Índia somado ao Many, cujo significado é “joia”.
Se os deuses hinduístas intercederam pelo menino do tigre, ou não, é mistério para ser desvendado. Certo mesmo é que Vraja fez do limão uma limonada, e exatamente a ausência de um membro, somado à sua aplicação sem igual, lhe permitiu frequentar os mais competitivos pódios da natação brasileira.
Apesar de dizer que lida bem com a perda do braço, é possível ver no Instagram que eventualmente as poses escondem a ausência do membro.
O menino do tigre é fera, bem resolvido e determinado, como mostra a entrevista concedida à CBN Cascavel no último sábado (18). Acompanhe os principais trechos:
Olga Bongiovanni (OB): Fale de sua família.
Vrajamany Rocha (VR): Na época dos fatos, meu pai morava em São Paulo. Hoje está em Minas. Minha mãe é uma ex-policial. Hoje exerce a advocacia. Eu me independi. Hoje moro em Uberlândia, dividindo um apartamento com uma amiga paratleta.
OB: O que você se recorda daquele 30 de junho de 2014, em Cascavel?
VR: Era um fim de semana. Meu irmão que mora em Cascavel foi passar férias com a gente em São Paulo. Viemos “devolvê-lo” e decidimos fazer um passeio no zoo. Sempre gostei muito de fazer carinho em gatos. Quis fazer o mesmo no tigre.
OB: E seu pai?
VR: O pai viu eu me divertindo com os bichos e jamais imaginou o que poderia acontecer, pois nenhum movimento dos animais mostrava qualquer irritação. Teve um momento que o instinto falou mais alto e me atacou… tem vídeos no YouTube até hoje mostrando outras pessoas fazendo carinho no tigre sem que ele reagisse desta forma.
OB: Como está sua vida hoje?
VR: Estou me preparando para as Paraolimpíadas. Sou independente, não moro mais com meus pais. Tenho que me virar para pagar os boletos sozinho. É muita conta, mas vivo às minhas custas.
Vraja com uma das mais de 100 medalhas que conquistou nas piscinas: campeão paulista e brasileiro rumo às Paraolimpíadas de Paris (Foto: Gilson Carvalho Júnior)
OB: Culpa alguém pelo ocorrido? Como foi sua adaptação?
VR: Com o braço direito perdido, adaptei tudo para o esquerdo. Revoltado? Não culpo ninguém. Sempre levei tudo muito de boa. Desde o momento que acordei da cirurgia quiseram ajudar a tirar a camisa, não quis, falei: “deixa comigo”. Criança se adapta muito rápido. Em três meses aprendi a escrever com a mão esquerda.
OB: E as próteses que você recebeu por doação, quando seu caso ficou conhecido em todo o Brasil?
VR: Me doaram duas próteses. No meu caso foi difícil adaptar, pois estou em fase de crescimento e meu corpo vai mudar pelo menos até os 24 anos, já que sou atleta.
OB: Quais as limitações que a deficiência traz no seu dia a dia?
VR: Assimetria é um problema que se manifesta no esporte. É difícil de lidar, é o que mais me trava, falta de equilíbrio. Mas fora isso me viro. Até esses dias eu cozinhava, limpava a casa, lavava louça, só não conseguia cortar a unha da mão, me socorria com a vizinha.
OB: Agora você tem companhia no apê…
VR: Sim, eu cozinho, acabei de fazer um feijão bem temperado aqui, e ela lava a louça. Para rachar aluguel passei a morar com a Mayara, amiga paratleta de natação.
OB: Se ofende quando lhe chamam de menino do tigre? É problema postar fotos sem camisa?
VR: Sem problemas, até prefiro tirar foto sem camisa, afinal sou um atleta de natação e isso é minha rotina.
OB: Que lembranças daquela ocorrência em Cascavel lhe visitam a memória?
VR: O tigre mordeu, segurou meu braço. Dali a pouco meu pai rasgou a camisa dele e amarrou, tentou fazer um torniquete, cobriu meu corpo com o tecido, fez os primeiros socorros. Assim que recuperei os sentidos, falei: “pai, não deixa sacrificar o tigre, não permita isso”.
OB: Como explica essa sua reação de proteger a fera?
VR: Infelizmente é muito comum, quando uma onça come um bezerro, que as pessoas matem a onça. Fiquei com muito medo que acontecesse alguma coisa com o tigre. Minha outra preocupação naquele momento era que fossem prender meu pai.
OB: Houve fake news nos bastidores desta ocorrência que incomodou muito você… Explique.
VR: Contaram para a imprensa de Cascavel que me preocupei com o tigre. Aí o pessoal do zoo deixou o tigre recluso por uma semana. Dali a pouco saiu uma fake news que o animal havia sido sacrificado. Tem gente que me odeia até hoje acreditando nisso.
OB: Isso está superado em sua cabeça?
VR: Tirei de letra. O episódio me deixou mais forte. Quero ser campeão mundial paraolímpico. Sou campeão paulista e brasileiro. Na competição nacional do mês passado, nadei três provas, pódio em todas, cinco medalhas em uma competição. Estudo nutrição, fisiologia, montei meu próprio treino, faço de quatro a seis horas por dia de piscina e academia. Estou perto do índice para competir em Paris.
OB: Seu nome não é dos mais comuns, deve pintar apelido aí…
VR: Apelido é Braja, às vezes me chamam de “Leãozinho”. Aí eu corrijo o pessoal e digo: não é leão não, é tigre mesmo!
Pai foi condenado
O pai do menino que teve o braço amputado, após ser atacado por um tigre no Zoológico Municipal de Cascavel, foi condenado em primeira instância no ano de 2019 pelos crimes de lesão corporal e omissão.
O caso aconteceu em julho de 2014, quando Vrajamany Fernandes Rocha, na época com 11 anos, passeava com o pai Marcos do Carmo Rocha.
Segundo a sentença, o pai do garoto deve cumprir três anos de prisão em regime aberto com prestação de serviços comunitários e restrição de circulação em horários determinados. A pena do caso foi agravada porque o menino perdeu o braço no ataque.
Na decisão, a juíza Fernanda Consoni destacou que o pai do menino não agiu para impedir o ataque e que estava ciente do risco que o filho estava sendo exposto. Ainda conforme a juíza, a atitude do pai demonstra ausência de cuidado e proteção.
“Mordomias” do Hu no Zoo
O tigre Hu não tem o que reclamar da vida que leva no Zoo de Cascavel. Ele acaba de ter seu recinto ampliado para 400 metros quadrados.
A “suíte” do tigre tem até piscina com cascata, troncos para afiar as garras e decks de madeira para repousar.
A transferência para o recinto todo ambientalizado para o belo felino ocorreu em fevereiro último.
Hu aprecia refrescar-se na água. Nas temporadas mais quentes, um timer na bomba aciona automaticamente a cascata exclusiva do tigre famoso.
Porém, o ataque ao menino é um tabu que sobrevive ao tempo. Oito anos após a ocorrência, a equipe de cuidadores de Hu se recusa a conceder entrevista a respeito.
Se tá bom assim para o Hu, e bom assim para o campeão Braja, é vida que segue…
Tigre Hu em suas novíssimas instalações: 400 metros quadrados, deck, piscina e silêncio da equipe de cuidadores sobre ocorrência de oito anos atrás (Foto: Gilson Carvalho Júnior)
O Pitoco