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Ideologia, identidade e igualdade. Com exceção da primeira letra “I” presente nas três palavras, nada além disso torna-as semelhantes. Ideologia, conforme o Dicionário Aurélio, é um conjunto de ideias, convicções e princípios filosóficos, sociais e políticos que caracterizam o pensamento de um indivíduo, grupo, movimento ou época. Identidade é a circunstância de um indivíduo ser aquele que diz ser ou aquele que outrem presume que ele seja. Já igualdade é uma organização social em que não há privilégios de classes.

Não fosse pelo substantivo “gênero” que acompanha as três palavras, a diferença de sentido seria clara para boa parte da sociedade. Contudo, anexar o conjunto de propriedades atribuídas social e culturalmente em relação ao sexo dos indivíduos (gênero) aos verbetes traz cada vez mais incompreensão sobre o que cada um dos termos significa. 

O recente debate aberto acerca do projeto “Escola sem partido” na comunidade rondonense trouxe à tona não somente as discussões sobre a doutrinação política de estudantes das escolas municipais de Marechal Cândido Rondon. Apesar de não constar no projeto de lei nº 29 apresentado no Legislativo rondonense, a temática da ideologia e identidade de gênero surgiu em meio à roda de conversas de pais, mães, estudantes e educadores, tendo em vista que, em nível nacional, outras propostas do movimento “Escola sem partido” tratam sobre o tema.

Para os mais conservadores, as discussões sobre gênero e sexualidade em sala de aula não deveriam existir. Já outros acreditam que a temática deveria fazer parte do currículo escolar, de forma inclusiva. 

Situações que são vivenciadas no município, como o desacordo de pais a instituições de ensino municipais desenvolverem trabalhos que tratem do gênero e da comunidade LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros) ou que enviam bonecas para casa a fim de que os alunos cuidem das mesmas suscitam ainda mais questionamentos sobre o que é ou não trabalhar a temática gênero, se o tema deve ser ou não exposto às crianças e se professores, pais e alunos estão preparados para tratar sobre identidade e ideologia de gênero.

Na visão da psicóloga Carina Frank, não tem como abordar a questão de gênero sem falar em sexualidade. “Nem pais, nem professores estão preparados para falar com as crianças sobre gênero”, opina.

Ela destaca que, ao se falar em gênero, mesmo os adultos ainda estão discutindo essa questão e tendo a percepção do que está certo ou errado acerca da temática. “Se pensarmos nos extremos, a partir do momento que não existir diferenças de gênero, não vai mais ter masculino nem feminino, ou seja, não vai mais ter pai e mãe e isso já é extremamente polêmico”, enfatiza.

Na opinião da profissional, seria muito mais fácil para todos esses movimentos se fosse ensinado à sociedade a respeitar as diferenças, tendo em vista que é muito antagônico pedir para respeitar as diferenças, porém, exigir que todos sejam iguais com a supressão dos gêneros. “Vejo que o que motiva todo mundo a ficar pensando e hora ter o extremismo é porque acreditamos muito em tudo aquilo que é divulgado o todo tempo e nem sempre isso tem um embasamento teórico ou estudo, especialmente aquilo que é colocado nas mídias sociais”, pontua.

 Ao passo em que se pede uma compreensão do tema gênero, ainda não há uma explicação concreta acerca do que vem a ser e de quais são os gêneros que existem hoje. Por isso tamanha delicadeza para se tratar deste tema, ainda mais em âmbito escolar. “Como o professor vai proceder diante de uma situação: vai polemizar o assunto, vai expor, sem saber o que é certo e errado? E existe certo e errado? Não é apenas uma questão de ser conservador, precisa-se de tempo para se digerir estas questões e isso pode acontecer daqui a alguns anos, mas isso não pode ser colocado de forma que as pessoas precisem aceitar de hoje para amanhã, seja porque foi publicado no Facebook, ou porque a televisão está levando a acreditar que é assim”, frisa.

Quando se fala em ideologia de gênero, comenta a psicóloga, a maioria das pessoas não sabe o que a expressão significa. “Então como você vai passar conceitos para a criança de algo que, primeiro, adultos não sabem e, segundo, é algo que está sendo idealizado?”, questiona.

Para Carina, levar discussões de gênero para dentro das escolas seria exigir das crianças e adolescentes decisões precoces. “Pedir para uma criança como ela vai se definir, na Educação Infantil, sobre ser menino ou menina, nos leva uma possibilidade muito maior de termos uma sociedade mais complexa e mais confusa, assim como já exigimos dos adolescentes aos 16 e 17 anos que decidam sua profissão para o futuro”, alerta.

O que diz a lei

A secretária de Educação, Márcia Winter da Mota, diz que a temática gênero é bastante polêmica e alvo de preconceitos na sociedade, especialmente pela presença dos extremismos favoráveis e contrários. Em meio a esse debate, ela pontua que muitos pais têm dificuldade em diferenciar muitas questões, como atividades que são desenvolvidas dentro das escolas e que em nenhum momento o professor tem a intenção de induzir a criança a seguir determinado gênero.

Em uma dessas situações, por exemplo, a professora executou uma atividade acerca do corpo humano e a higiene utilizando bonecas para tratar o tema de forma mais lúdica com os alunos e, pelo objeto ser utilizado tanto com meninas quanto meninos, houve pais que entenderam a atividade como uma forma de trabalhar a questão do gênero. “Nessas situações, os pais devem tirar dúvidas com os professores e a equipe pedagógica para evitar informações desencontradas”, enfatiza.

A secretária explica que com base nas discussões do Plano Nacional de Educação (PNE), que determina as diretrizes, metas e estratégias para a política educacional, foi enviado para que cada município discutisse se era ou não favorável trabalhar a temática de gênero nas escolas. “Em Marechal Rondon este tema não foi aprovado pela Câmara de Vereadores e no nosso Plano Municipal de Educação não consta nada sobre a questão de gênero. Porém, enfatizamos muito em sala de aula a questão do respeito entre todas as crianças”, esclarece a secretária de Educação.

A diretora de Ensino do município, Andreia Bach, expõe que são abordadas questões acerca do corpo humano e seu desenvolvimento, mas a questão de gênero especificamente não é colocada em pauta nas salas de aula. “Entretanto, é necessário que esse tema seja discutido na sociedade no sentido de esclarecer algumas questões. Há pessoas que nos procuram na secretaria e percebemos muita falta de esclarecimento, por isso orientamos aos pais que busquem a escola para entender o objetivo das atividades, o que estava sendo tratado”, ressalta.

Em alguns momentos, acrescenta, é perceptível a confusão entre a identidade e ideologia de gênero – temas que não são trabalhados nas escolas – e a igualdade de gênero, assunto que é preconizado até mesmo pela Organização das Nações Unidas (ONU), no 5º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS). “Igualdade de gênero é exposta no sentido de que as mulheres sejam colocadas no mesmo patamar que os homens, no sentido de direitos deveres, questões salariais, por exemplo. Em nossa sociedade, as mulheres ainda sofrem muito preconceito, embora velado, por isso enfatizamos a valorização da mulher na sociedade e muitas pessoas acreditam que a igualdade de gênero é ideologia ou identidade de gênero”, destaca a diretora de Ensino.

Na prática

As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para a Educação Básica colocam como transversal o tema gênero e a diversidade. Ou seja, são conceitos que expressam valores básicos à democracia e à cidadania e obedecem a questões importantes e urgentes para a sociedade contemporânea. Na visão da psicopedagoga e professora Eliane Grisa, que atua na Secretaria de Educação de Marechal Rondon, as crianças que frequentam a Educação Infantil estão em uma faixa etária em que ainda não possuem uma maturidade oral e até mesmo emocional para discernir e compreender as questões específicas de gênero. “O professor hoje realmente não está preparado para trazer essa temática para a sala de aula. Contudo, todos agem com muita responsabilidade acerca dessas questões, pois isso envolve muito a cultura familiar, valores morais e religiosos da criança”, observa. “O professor precisa ter muito cuidado e cautela para não criar conflitos com a família, porque a criança precisa ser valorizada na sua identidade moral, cultural e religiosa”, complementa.

Na faixa etária dos estudantes atendidos pelo município (Educação Infantil e Ensino Fundamental I), as questões de gênero não são trabalhadas. Entretanto, a profissional enfatiza que são abordadas em sala de aula temáticas voltadas ao respeito, à diferença como um todo, independente da cor ou da raça, sempre de forma lúdica, com contação de história, roda de conversas, músicas e até mesmo nas brincadeiras. “Na escola, não existe brincadeira de menino e de menina. Todos participam das brincadeiras ao mesmo tempo: se vão brincar de boneca ou jogar bola, todas as crianças vão participar independente de ser menino ou menina”, informa.

Para Eliane, é importante que os pais compreendam que para a criança na faixa etária dos quatro anos, quando inicia a vida escolar, é muito natural a brincadeira. “Eles são curiosos por natureza, por isso, para um menino dessa idade ver uma menina brincando com uma boneca e ter interesse pelo objeto é um instinto natural e não significa que ele está se identificando com a boneca, mas, sim, que ele está participando da brincadeira. Os pais precisam entender que essa brincadeira nesta faixa etária não vai definir uma identidade de gênero para a criança, porque é natural dela se interessar e experimentar novas brincadeiras. Muitas vezes, os pais não têm essa compreensão e têm o receio de que determinada brincadeira vá interferir na identidade da criança futuramente”, relata.

Criança não tem preconceito

Eliane pontua que, como parte dos temas transversais estabelecidos pelas Diretrizes Curriculares, os professores trabalham com a valorização do respeito a toda e qualquer pessoa, do indivíduo como um ser único, especial e diferente que precisa ser respeitado nas suas particularidades. “Às vezes se trabalha isso até em situações de conflito, onde se coloca para a criança até que ponto pode causar sofrimento uma situação de preconceito ou discriminação, quanto sofrimento isso pode gerar para quem se torna vítima e o que pode acarretar para quem provoca”, exemplifica.

As questões de respeito ao outro independente de quem seja também devem iniciar na família na visão da psicopedagoga. A dinâmica de divisão de responsabilidades em casa, por exemplo, deve ser igual para as crianças: se a menina faz algum serviço de casa, o menino também deve fazer. “Penso que isso deve ser trabalhado desde os pais para que eles sejam, junto aos professores, uma referência e um modelo de respeito para as crianças, já que esses modelos acabam indo para a sociedade, quando no futuro essa criança cede o lugar no ônibus para uma pessoa mais velha, quando não estaciona o carro na vaga para deficientes”, opina.

De acordo com a profissional, a criança não vê a diferença entre as pessoas como algo pejorativo. “Ela reconhece as diferenças, inclusive as biológicas, mas ela não discrimina. A criança não discrimina até que o adulto a ensine a fazer isso”, diz.

Muitas vezes, menciona Eliane, o preconceito começa no próprio seio familiar, quando é apresentado para a criança que a cor rosa serve apenas para meninas e a azul somente para meninos. “Pelos modelos de referência familiar as crianças também tendem a ter essas percepções. Hoje muitas mulheres trabalham fora, mas em muitos casos mesmo trabalhando fora ela tem as responsabilidades do lar sem a cooperação do homem e a criança começa a criar a referência de que só a mulher é responsável pelas tarefas do lar ao invés de ter a percepção de parceria e de que todos colaboram”, frisa. “Quando a criança cresce com esses modelos muito enfatizados no seu meio, pode surgir, sim, um preconceito a partir dessas ações”, reforça.

Confira a matéria completa na edição impressa desta sexta-feira (24).

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