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Marechal

60% dos atendimentos envolvem drogas, conflitos familiares e evasão escolar

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Mirely Weirich/OP
Falta de ambiente eficiente em casa, onde há abuso de álcool, e o envolvimento com drogas e conflitos familiares levam à violação do direito de crianças e adolescentes

Os anos passam, mudam os professores, diretores de escolas, delegados, dirigentes das forças de segurança pública, conselheiros tutelares, mas os problemas que cercam a violação de direito de crianças e adolescentes continuam os mesmos – e, muitas vezes, fortalecidos.

Somente neste ano em Marechal Cândido Rondon o Conselho Tutelar, órgão encarregado pela sociedade para zelar dos direitos das crianças e adolescentes, já registrou pelo menos 60 casos de violência contra menores de idade, seja sexual, física, mental, emocional ou psicológica. O número é quase a metade do registrado em todo o ano de 2016, quando aproximadamente 185 casos foram atendidos pela entidade. “Vejo que se as determinações descritas nos 267 artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) tivessem começado a deixar o papel para fazer parte do cotidiano, certamente o retrato da infância e adolescência no país seria diferente”, declara a presidente do Conselho Tutelar, Ilse Grosklass.

Em 2010, o Conselho Tutelar apontou que cerca de 50% dos atendimentos prestados a adolescentes possuíam alguma ligação com drogas. Hoje, Ilse resume que 60% dos atendimentos envolvem tanto o uso de drogas quanto a evasão escolar e os conflitos familiares. “Não vou elencar apenas o envolvimento com as drogas porque a própria bebida alcoólica é uma droga. Temos crianças de 12, 13 anos que entram em coma alcoólico e acabam parando na Unidade de Saúde 24 Horas”, revela.

Segundo a conselheira tutelar, esses números não podem ser divulgados porque envolvem crianças e pré-adolescentes que precisam ser protegidos, porém, são dados alarmantes existentes no município. “No meu tempo fomos criados assim: o pai tomava a cerveja dele e nós sabíamos que não podíamos tomar, então a gente nem pedia. Já hoje, quem manda em casa são as crianças. Tem casas que você chega e quem vai te receber são as crianças. Houve uma inversão de valores muito grande e isso é preocupante”, salienta.

De acordo com Ilse, muitas vezes os conflitos familiares são resultado do consumo de álcool e drogas e os filhos, quando atingem a pré-adolescência, não querem mais frequentar a escola porque o descaminho, na visão deles, é mais fácil. “Eles dizem que sentem-se bem usando maconha, mas isso é momentâneo, eles não conseguem medir as consequências”, comenta.

Hoje, o envolvimento com as drogas está cada vez mais precoce. São jovens de 13, 14 anos atendidos pelo Conselho que consomem entorpecentes. “Antigamente atendíamos casos em que os jovens estavam na faixa de 16, 17 anos”, expõe. “Vemos que esses maiores usam os menores, porque eles entram nesse mundo por conta do dinheiro fácil e também por serem influenciáveis. Além disso, eles sabem que se forem pegos, dificilmente serão internados pela falta de vagas, não serão presos e as medidas socioeducativas são consideradas brandas por eles”, evidencia Ilse.

Para a conselheira tutelar, se o ECA funcionasse na prática como está na teoria, muita coisa seria diferente na sociedade. “Os adolescentes estariam em período integral na escola, os pequenos estariam na creche e não teriam tempo ocioso para ficar se ocupando com descaminho”, expressa.

No município, a entidade realiza em torno de 400 atendimentos por mês, tanto na sede quanto nos distritos, que envolvem casos de atendimento médico deficitário, falta de vagas em creches, violência física e emocional, violência sexual e atentado violento ao pudor, negligência dos pais ou responsáveis, evasão escolar, requisição de documentos pessoais, matrículas escolares por determinação judicial, orientação e aconselhamento para pais, encaminhamentos para a rede de proteção social, ameaças ao direito de ir e vir (aprisionamento), alienação parental, atos infracionais praticados por adolescentes, entre outros.

 

Adolescentes e mães

Ilse menciona que o índice de adolescentes grávidas também chama a atenção, já que, na visão dela, o relacionamento sexual começa muito cedo. “Já atendi um caso em que um jovem de 14 anos se envolveu com uma menina de 11 anos. Ele é um adolescente e ela é uma criança”, constata. “Fazemos o encaminhamento porque a menina de 11 anos teve seu direito violado, mas o de 14 anos de certa forma também teve. Para ele poder fazer isso, é porque ele vivenciou de alguma forma, afinal, o espelho dos filhos são os pais”, complementa.

Como conselheira, Ilse acompanha hoje seis gestantes de 14 anos, além de uma jovem que foi mãe aos 13 anos e precisa de uma rede de proteção para realizar o fortalecimento de vínculos da família. “Como uma criança de 13 anos vai pegar um bebê no colo e pensar ‘este é meu filho’ se ela não teve isso em casa? Felizmente essa menina está me surpreendendo a cada dia que passa, estou vendo melhoras no contexto familiar dela, uma casa muito caprichosa comparada com a mãe, sendo que ela não tinha comprometimento”, relata.

Para estes casos, o Conselho Tutelar tem até mesmo prestado trabalho que não é de sua atribuição, orientando as adolescentes acerca de formas de prevenir a gravidez. “Tive protestos ao tomar essa atitude de que isso não era nossa atribuição, todavia, não há em nenhum lugar escrito que nós não podemos fazer essa orientação. Elas são adolescentes que precisam de atenção, então por que não nos empenharmos e orientarmos e quem sabe transformá-las em mães de família que saibam conduzir seus filhos? Isso é menos trabalho para nós e para rede de proteção futuramente” aponta.

 

Prioridade absoluta

Na visão de Ilse, a lei que trata a criança e o adolescente como um sujeito em desenvolvimento, tratando dos direitos da vida digna, da escola (incluindo a educação integral), a convivência familiar e os direitos dos seres humanos, é uma lei fundamental que deve ser melhor assimilada por pais, responsáveis, comunidade e todo o cidadão comum. “Até mesmo alguns envolvidos na rede de proteção não têm o mínimo de conhecimento da legislação que diz respeito a essas crianças e adolescentes”, frisa.

A presidente do Conselho Tutelar não deixa de apontar que houve avanços, tanto é que os índices de mortalidade infantil e de acesso à educação, por exemplo, melhoraram muito nos últimos anos. Contudo, os governos ainda não se mostraram capazes de entender que crianças e adolescentes como sujeitos de direito são pessoas em condição peculiar de desenvolvimento e prioridade absoluta. “Se a criança e o adolescente têm prioridade absoluta assegurada, por que a criança não tem vaga na creche? Por que a criança fica duas, três horas na fila para ser atendida no médico?”, questiona. “Existe uma falta de compromisso ético, vontade política e competência técnica na condução das políticas públicas neste campo, mas não só nos municípios. São todas as esferas: federal, estadual e municipal. Hoje acho até que os municípios fazem milagre dentro do contexto nacional que estamos vivendo”, comenta, ao falar sobre a falta de vagas em creches, que é por lei um direito a todas as crianças. “Nós não podemos atribuir a culpa ao município. O governo federal jogou a responsabilidade ao município e ele arcou com as consequências. Construir a estrutura é o mínimo, mas manter isso depois?”, questiona.

Nos casos de atendimento médico deficitário atendidos pelo Conselho Tutelar, Ilse diz que quando envolvem crianças e adolescentes são situações que precisam ser resolvidas “para ontem”. “Se uma criança precisa fazer exame e ele é agendado para 20 dias, em que condições ela vai ficar esperando? E é aqui que entra essa questão da falta de compromisso ético. Se a criança é prioridade absoluta, como vai esperar 20 dias por um exame?”, critica. “Uma criança vítima de algo não pode esperar, não tem hora, por isso o Conselho Tutelar atende 24 horas por dia, sete dias por semana”, complementa.

 

Responsabilidade de todos

O Estatuto da Criança e do Adolescente, conforme a conselheira tutelar, é enfático quando requer a participação não só do Estado, mas da família e da sociedade em geral na promoção dos direitos da criança e do adolescente. “Para ser conselheiro tutelar é preciso primeiramente muita dedicação, dinamismo e determinação”, enfatiza. “Crianças, adolescentes e seus pais têm diferentes necessidades em diferentes momentos de seu ciclo de vida e o Conselho Tutelar precisa orientar os pais em termos de como estabelecer limites, regras, disciplina e formas de ajudar seus filhos no processo de crescimento”, afirma Ilse.

 

Intervenção

Os casos de evasão escolar, que ocorre quando um aluno deixa de frequentar a escola e fica caracterizado o abandono escolar, geralmente ocorre com adolescentes. De acordo com Ilse, o Conselho Tutelar, mediante advertência e orientações, consegue recuperar alguns estudantes que voltam aos bancos escolares. Outros, no entanto, negam-se a voltar para as instituições de ensino. “Por determinações judiciais também precisamos dar cumprimento a medidas de matrículas escolares. Deparamo-nos com jovens que dizem que não querem mais ir à escola e aí eu me pergunto: você vai colocar dentro de sala um aluno que não quer estudar e tirar o direito de 30 alunos que lá estão querendo estudar? Porque ele não vai para estudar, ele vai lá só para avacalhar. Não vai deixar professores trabalhar, os colegas estudarem… mas é uma determinação judicial e um direito do jovem estar em sala de aula e nós temos que cumprir”, relata.

O colegiado de conselheiros também realiza diligências mediante denúncias de todas as naturezas e, segundo Ilse, muitas vezes deparam-se com situações difíceis, em que o adolescente chegou a tal ponto por negligencia e omissão dos pais. “Eles não cobraram lá atrás quando ele era pequeno e agora os pais terceirizam a educação”, lamenta.

 

Rede de proteção

Em situações que a criança vive em conflito, ou seja, quando não há um ambiente eficiente em casa, com brigas constantes, alienação parental – que são disputas familiares, quando os pais separam-se e falam mal um do outro para os filhos – envolvimento com drogas e bebidas alcoólicas, o Conselho Tutelar encaminha o menor de idade para a rede de proteção. “Uma vez que ele tem os direitos violados, ele vai para o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), mas se ainda há chances de recuperação, encaminhamos ao Centro de Referência de Assistência Social (Cras)”, explica Ilse.

Em casos em que os problemas envolvem drogas e álcool, o encaminhamento é para o Centro de Atenção Psicossocial (Caps). “Em cada órgão tanto o menor quanto a família recebem atendimento de psicólogos e assistentes sociais e cada um faz o seu papel dentro do seu contexto”, enfatiza.

De geração em geração

Para Ilse, muitos dos problemas presentes e que se fortalecem ao longo dos anos na comunidade ocorrem pela falta de união das famílias. “Quando os pais ainda vivem juntos, normalmente trabalham em turnos diferentes e isso acaba desestruturando a família”, aponta.

Mesmo que os pais estejam em casa, muitas vezes buscam atividades de lazer e deixam os filhos na rua, brincando com amigos, porém, deixam de verificar quem são essas companhias e quais atividades estão fazendo. “Eu não consigo ver melhora nesses problemas sociais em curto prazo, apesar de campanhas de toda a rede de proteção”, declara.

Os jovens, menciona, estão sendo pais cada vez mais cedo, e esses problemas que afetam as crianças e adolescentes estão se reproduzindo, passando de geração em geração. “Muitas das famílias atendidas aqui são as mesmas desde o começo de Conselho Tutelar. Lá atrás eram os avós, passou para os filhos, que hoje também já são pais e seus filhos também já têm filhos e assim vai acontecer com os filhos deles”, prevê.

Ilse comenta que cuidar de crianças e adolescentes todos podem, todavia, todos também precisam saber que eles têm direitos e deveres desde cedo, ainda quando crianças. “Direitos e deveres dos pais, assim como dos filhos. E o Conselho Tutelar deve e precisa trabalhar na prevenção e orientação sempre que preciso for”, conclui.

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