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Turminha de quatro patas ganha relevância e faz gente da OAB se especializar em ramo outrora desconhecido: direito animal

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Advogada cascavelense Evelyne Paludo: “Quando a gente tem um animal adquirido, temos que ter claro que ninguém compra um amigo, ninguém compra um filho. O meu filho não é produto, é indivíduo. Animais também são indivíduos” (Foto: Jairo Eduardo/Pitoco)

A migração do animal amarrado por uma corda curta e tosca ou acorrentado no quintal, alimentado por polenta e água em uma lata enferrujada, para o tapete macio ao lado da lareira é um acontecimento da virada do século.

O bichinho “tomava banho” quando chovia. Se abrisse a boca, ralhava-se com ele. Se após uma longa jornada de sono o pet levantasse em busca de um afago, logo ouvia: “vai deitar, jaguara!”.

Sem dizer em maus-tratos mais explícitos, como a bombinha acendida e estourada amarrada no rabo do bichinho para vê-lo correr desesperado.

Talvez daí tenha surgido a expressão “vida de cachorro”. Ou “cão vadio”. A verdade é que, em grande medida, essa realidade mudou.

Vídeos com maus-tratos a animais circulam velozmente pelas redes e os malfeitores são rapidamente cancelados, processados e colocados em seus devidos lugares.

O totó, o mimi ou a calopsita ganharam status de membros da família. São milhões e milhões de bichos aninhados na residência dos brasileiros. A repercussão econômica mostra a força da migração do quintal para o tapete: o segmento pet cresceu incríveis 27% no ano recessivo de 2021 e já movimenta mais de R$ 51 bilhões.

A turminha de quatro patas ganhou tanta relevância que já há gente com botom da OAB se especializando em um ramo outrora desconhecido nos tribunais: o direito animal.

É o caso da jovem advogada cascavelense Evelyne Paludo, ela própria cuidadora de animais, tutora adotiva de quatro cães resgatados de maus-tratos: Tom, Laica, Princesa e Lepi.

A bicharada convive em família multiespécie com o marido da advogada, o agrônomo Leonardo, e o filho do casal, Vicente, de seis anos. Família multiespécie? “Todos são integrantes de minha família, indivíduos que têm o mesmo respeito de meu marido, de meu filho, pois convivem, coabitam, coexistem comigo no planeta e moram dentro de minha casa”, define Evelyne. “Dividimos com os animais esse breve tempo de vida que eles têm”, complementa a advogada.

Misturar bicho com gente, colocá-los no mesmo nível, não é conceito estranho aos adeptos de famílias multiespécies?
“Quando engravidei, os amigos perguntaram: e quando o Vicente nascer, o que você fará com os cachorros? Respondi: o Vicente vai chegar por último, terá que se adaptar à rotina, a casa já está andando…”.

No dicionário já aparece o conceito dessas famílias que misturam sapiens, caninos, felinos e outros bichinhos. A família multiespécie pode ser definida como aquela que se baseia na relação humano-animal. Ou seja, é a família composta por humanos e seus animais de estimação.

Evelyne Paludo é cuidadora de animais e tutora adotiva de quatro cães resgatados de maus-tratos: Tom, Laica, Princesa e Lepi (Foto: Divulgação)

Acompanhe a entrevista concedida na recepção da OAB – subseção de Cascavel, na segunda-feira (16), pela advogada especialista em direito animal:

Pitoco: Qual é a base legal para estabelecer o direito animal?
Evelyne Paludo (EP): O direito animal está na Constituição de 1988, portanto previsto como base constitucional há mais de 30 anos. Como não tínhamos a aplicação prática da legislação, muita gente estranha e muitos outros acabam não sabendo que ela existe.

Pitoco: Por que precisamos de lei para “bichos”?
EP: O direito animal foi necessário pelo mesmo motivo que foi necessário estabelecer o princípio da dignidade humana na Constituição. Entende-se que o ser humano não tem limites, ele não se autorregula, então ele precisa de uma regulação externa. Por essa razão que o princípio da dignidade humana veio parar em nossa carta magna, para proteger os sapiens uns dos outros.

Pitoco: Em qual artigo está a lei que assegura direitos dos pets?
EP: O direito animal veio para a Constituição Federal no artigo 225, parágrafo primeiro, inciso sétimo, quando proíbe a prática cruel com animais e estabelece um limitador para atuação da espécie humana em relação a outras espécies de animais. O direito animal tem trabalhado em conjunto com o direito do consumidor, com o direito das famílias, com o direito ambiental. E cada vez mais as demandas envolvendo direitos dos animais estarão presentes na sociedade, no Legislativo e no Judiciário. A evolução é a ordem, o contrário ou a estagnação são um problema.

Pitoco: Faz sentido?
EP: Todo o sentido. É importante lembrar que também somos do reino animal, e nos julgamos superiores às demais espécies a ponto de submetê-las, e então o direito animal veio para equacionar isso.

Pitoco: O cãozinho saiu da corrente no quintal e veio para dentro do lar sapiens. Isso representa o espírito de um tempo?
EP: Trata-se de uma evolução cultural, de um avanço civilizatório da sociedade. É o momento em que olhamos para as nossas práticas antiquadas e as superamos com o conhecimento contemporâneo. Entendemos que não dá mais para agir da mesma forma. E a economia tem muito a ver com isso…

Pitoco: Economia?
EP: É a evolução da sociedade acompanhada por fatores econômicos relevantes. Criou-se um mercado pujante. Um dos poucos setores econômicos que se expandiu na pandemia é o ligado à causa pet, clínicas veterinárias, pet shops, hospitais veterinários, toda essa cadeia econômica estabelecida no entorno de famílias multiespécies.

Pitoco: O Judiciário conseguiu acompanhar essa migração do bicho amarrado para membro da família?
EP: Para o Judiciário já é pacífico. Não se vê mais casais fazendo separação ou divórcio e partilhando animais como se fossem bens. Animais entram como vulneráveis, tendo sua guarda disputada pelo casal. É disputa para definir quem vai pagar pensão, quem vai exercer o direito de convivência, isso tudo é um avanço.

Pitoco: E quem fica com o bicho em caso de separação de casal sapiens?
EP: Animais ficam, assim como as crianças, na condição de vulneráveis. Vão ficar com quem tem maior relação afetiva e quem tenha mais disponibilidade de prover o cuidado e a atenção necessários no dia a dia.

Pitoco: E se o bichinho foi adquirido e pago por uma das partes? Quem pagou leva?
EP: Nem sempre quem pagou é quem tem os cuidados diários e criou vínculo afetivo. Importante mesmo é ter a visão de que aquele animal é mais um vulnerável no seio familiar, assim como uma criança.

Pitoco: Me parece meio subjetivo esse critério, a esposa vai dizer em juízo que tem mais vínculo, o marido vai usar o mesmo argumento…
EP: A base jurídica é a mesma que se usa quando vai definir a guarda de uma criança. Será preciso juntar provas ao processo.

Pitoco: Provas? Quais?
EP: Relatos do médico veterinário, quem levava para consultas, quem levava para o banho no pet shop, quem levava para passear. Aí é possível juntar fotos, vídeos, depoimento de vizinho, enfim, inúmeras possibilidades bem objetivas.

Pitoco: Não é estranho estender direito de crianças para direito de animais?
EP: Quando a gente parar de pensar no processo envolvendo um animal e começar a olhar um processo olhando um vulnerável, o direito já oferece todas as ferramentas. E as mesmas usadas com os vulneráveis são aplicáveis aos animais, pois eles também dependem de assistência da família para sobreviver. Reconhecer direitos de animais não subtrai direitos de crianças ou qualquer outro vulnerável.

Pitoco: Tem cachorro e gato dentro da urna. Tem bancada de cachorro na Câmara Municipal. Interprete esse fenômeno recente no mundo da política…
EP: O meio político faz a seguinte leitura: para onde a sociedade está caminhando? Onde encontro um nicho que vota por uma causa? Então não é votar em alguém, é votar em uma bandeira. A causa animal é um propósito que oferece uma bandeira política que junta pessoas para votar e eleger alguém.

Pitoco: Há legítimos representantes das quatro patinhas, mas há oportunistas também nesse meio…ou não?
EP: Lógico que nesse meio há quem tenha propriedade para falar sobre o assunto, está candidato ou eleito para atender com dignidade essa causa. Mas tem muita gente se aventurando, dizendo que fez algo para não dizerem que nunca falou de flores. Mas não tem conhecimento, não está à altura da causa.

Pitoco: Como o eleitor diferencia esses sapiens se no escurinho do mundo político todos os gatos são pardos?
EP: Aí cabe ao eleitor passar a peneira e pesquisar. Exercer cidadania ativa não se traduz em comparecer às urnas a cada dois anos, digitar alguns números e apertar o botão verde. É ir além. É deixar claro que essa bandeira importa na hora de definir o voto. Neste contexto, sou eu o responsável por buscar o histórico de quem diz defender essa causa, conversar com quem está há mais tempo neste propósito para saber se aquela pessoa tem um trabalho na área ou não.

Pitoco: Um debate quente no mundo pet põe contendores em duas trincheiras bem distintas e beligerantes: é politicamente incorreto comprar animal de pedigree ao invés de adotar um abandonado?
EP: Aqui a divisão é bem clara. Quando a gente tem um animal adquirido, temos que ter claro que ninguém compra um amigo, ninguém compra um filho. O meu filho não é produto, é indivíduo. Animais também são indivíduos.

Pitoco: Explique melhor esse ponto…
EP: Adotar ou adquirir um animal é uma decisão individual. Eu poderia listar os motivos que me levam à adoção. Um deles é a ausência quase absoluta de fiscalização do setor econômico do comércio de animais. Eu, como cidadã, busco saber as práticas que meu dinheiro financia. O maior motivo, certamente, é o respeito à dignidade animal que me faz entender a importância de não considerar as gestantes de outras espécies como reprodutoras de produtos à venda.

Pitoco: O animal adquirido é fruto de uma escolha ruim?
EP: Como disse, é uma decisão individual e isso não retira do animal (seja adotado, seja adquirido) o direito à proteção de sua dignidade e todos os seus reflexos, além dos direitos de consumidor que ele também representa. Aos tutores, representantes legais dos animais, cabe a busca pela defesa desses direitos, do animal e da família multiespécie.

Pitoco: Você estabelece uma diferença entre indivíduo de produto…
EP: Sim, temos animais produzindo outros animais para a venda como produto. Se a legislação permite criadores, canil, gatil, tem que ter uma fiscalização proporcional. Então, se isso é legal, é preciso que a fiscalização aconteça para que não haja as barbariedades que temos hoje.

Pitoco: A atividade não é fiscalizada?
EP: A legislação municipal precisa ser implementada, a lei criada em 2014 e não foi executada até hoje pelo município. Isso causa problema gigantesco. Se trato animal como produto, enquanto produtor preciso abrir uma MEI e apresentar nota fiscal deste produto, pois sou responsável pelos problemas deste produto. Estranho isso, estamos tratando de relações de consumo envolvendo vidas… É relação de consumo efetivamente. Alguém produziu aquele animal e outro alguém está comprando aquele animal. O bichinho vira um produto. Então o Código de Defesa do Consumidor precisa ser aplicado. Para aplicar de forma efetiva, é preciso fiscalizar o produtor. Tem que ter alvará, responsável técnico pela ninhada, emissão de nota fiscal, pois isso pode configurar até sonegação fiscal.

Pitoco: Estamos em um limbo jurídico?
EP: A questão é: quantos criadores temos hoje? O município tem esse controle? A lei municipal determina alvará, emissão de nota fiscal, castração por conta do criador aos seis meses de idade do animal. Quem está fiscalizando se nem os alvarás são cobrados?

Pitoco: Neste caso o consumidor está vulnerável também, como a criança sapiens e o cãozinho?
EP: Temos o código sanitário estadual determinando que a criação de animais não pode ser dentro do período urbano. Em Cascavel todos estão na cidade. O município descumpre o código sanitário estadual. É uma sucessão de problemas para o consumidor. Em muitos casos, a pessoa está comprando um animal às cegas, não sabe o CNPJ, o endereço de quem vendeu. Isso vulnerabiliza direitos. Ajuizar contra quem para reparar direitos como reembolso do valor, de custeio de tratamentos?

Pitoco: Qual a demanda jurídica mais comum no seu escritório?
EP: São duas: embarques de animais em avião para voos internacionais e nacionais é uma delas. A família de mudança precisa levar todos os seus integrantes e a companhia aérea reluta. E a outra queixa cotidiana, infelizmente, diz respeito a problemas na prestação de serviços de pet shops. É uma demanda muito frequente. São lesões, quedas e até óbitos que demandam indenizações.

 

Advogada cascavelense Evelyne Paludo: “Quando a gente tem um animal adquirido, temos que ter claro que ninguém compra um amigo, ninguém compra um filho. O meu filho não é produto, é indivíduo. Animais também são indivíduos” (Foto: Jairo Eduardo/Pitoco)

 

Quando a gente parar de pensar no processo envolvendo um animal e começar a olhar um processo olhando um vulnerável, o direito já oferece todas as ferramentas

 

Bicharada convive em família multiespécie com o marido da advogada, o agrônomo Leonardo, e o filho do casal, Vicente (Foto: Divulgação)

 

Pitoco

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