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Tarcísio Vanderlinde

A profecia do ganso de praga

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No âmbito dos 500 anos da Reforma Protestante, destaco obra do historiador e teólogo Martin Dreher intitulada “De Luder a Lutero: uma biografia”. O texto foi publicado pela Editora Sinodal no ano de 2014. 

O autor é notabilizado por diversas publicações que envolvem o luteranismo. Na biografia, invade a vida privada de Lutero, seu casamento indeciso e tardio com Catarina von Bora, e persegue a trajetória do monge inconformado pela geografia alemã. Discute sua origem, estudos preliminares, a “trágica” decisão pela vida monástica (reprovada pelo pai), seu aprimoramento teológico, apogeu e declínio.

De pronto, esclarece o tão inusitado título do seu livro: nascido “Luder” (vagabundo), após o debate de Heidelberg, Lutero decide assinar Eleutherius, expressão que retira do grego ao estudar carta escrita pelo apóstolo Paulo aos Gálatas. A palavra carrega o sentido de “libertação”. De vagabundo passa a ser liberto por graça e por fé, por causa de Cristo.

A mudança de nome indica a evolução espiritual de Lutero. Neste sentido, acaba ele mesmo se descobrindo um “hussita”, referência ao “herege” João Huss, condenado à fogueira no Concílio de Constança um século antes. Dreher reproduz parte de carta de Lutero a Espalatino, apoiador de seus escritos.

“Todos nós somos hussitas e, no final das contas, Paulo e Agostinho também são. De tão espantado, não sei o que pensar quando reflito sobre o terrível juízo de Deus em relação ao ser humano: o evangelho claríssimo e verdadeiro já foi queimado há 100 anos, e ainda hoje é condenado e ninguém pode confessá-lo”. Mas quem foi João Huss afinal?

Filho de camponeses, havia nascido na Boêmia, atual República Tcheca, um século antes de Lutero chamar atenção com suas ideias na vizinha Alemanha. O período de Huss é considerado como uma época sombria na história da Igreja, onde colégios cardinalícios rivais, conchavados com o domínio temporal disputavam o poder eclesial da Igreja. Qualquer divergência com os colegiados em disputa significava uma sentença de morte antecipada.

Motivado pelos escritos do reformador inglês João Wyclif, João Huss é considerado um dos precursores da Reforma e chegou a ser reitor da Universidade de Praga. Defendia um cristianismo amparado nos escritos bíblicos. Enquanto reitor pregava de maneira contundente contra as imoralidades que se percebiam no alto clero. Eram pregações que causavam desconforto à classe.

Amparado por salvo-conduto de Sigismundo, imperador do Sacro Império Romano-Germânico, Huss compareceu ao Concílio de Constança no ano de 1415 para dar explicações sobre suas convicções teológicas. Foi uma armadilha. Por não renunciar o que considerava como prática convergente com os textos bíblicos, Huss foi encarcerado, julgado e condenado a morte na fogueira.

O historiador Carter Lindberg observa que após a execução, Huss foi declarado mártir e herói nacional pela Universidade de Praga. Na atualidade, o visitante pode observar um monumento em memória a Huss na praça Staromestske Namesti no centro de Praga, e adentrar à igreja hussita de São Nicolau que fica a poucos passos do local.

Conta-se que durante os minutos finais de sua vida, Huss teria profetizado que, embora seus inimigos estivessem queimando um ganso (huss em tcheco) preso à estaca da fogueira, a ele se seguiria um cisne que não teria o mesmo destino. A tradição popular aplicaria esta profecia a Lutero um século mais tarde.

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