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Tarcísio Vanderlinde

Destino transitório do caminhante

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Numa tépida manhã de maio de 2014, saímos de Gizé, periferia da cidade do Cairo, com destino ao “Monte de Moisés”, o “Jebel Muça” dos muçulmanos. Durante a viagem, aos poucos fomos percebendo algo que não parecia apenas uma exibição teatral. Viajávamos sob escolta armada. Coisas imprevisíveis poderiam ocorrer naquele deserto por onde passávamos. Não éramos tão corajosos assim, mas o apelo por aquele ambiente pulsava mais forte.

Próximo ao golfo de Suez, paramos num lugar chamado Mara. Segundo o relato de Êxodo, sob a orientação do Eterno, Moisés agiu ali para que águas amargas fossem miraculosamente purificadas a fim de saciar a sede dos hebreus. Ainda naquele dia atravessamos paisagens desérticas que pareciam ter saído das páginas da Bíblia.

Já anoitecia quando chegamos ao protetorado de Santa Catarina, no coração da península do Sinai. Era a base de onde pretendíamos na madrugada do dia seguinte vencer a trilha que nos levaria ao topo do Sinai. Conforme relatos bíblicos, coisas extraordinárias haviam acontecido naquele chão onde pisávamos. Fora ali que Moisés ouvira a ordem de retirar as sandálias, pois estava a pisar em terra santa.

Tínhamos certa ideia da trilha. Havíamos visto seu traçado por imagens de satélite. Aos nossos pés, na madrugada, ela foi se revelando cada vez mais misteriosa, inóspita, cansativa. Mais da metade do nosso grupo desistiu. Outros, auxiliados por beduínos, puxados, empurrados, conseguiram, enfim, pôr o pé no topo.

São várias as motivações que levam uma pessoa para o deserto. Nos textos bíblicos são encontradas inúmeras referências ao deserto, sejam elas literais ou metafóricas. Eremitas se retiravam para regiões desérticas do Oriente Médio para levar uma vida contemplativa nos primeiros séculos do cristianismo. O aspecto místico que acompanha o ato de se retirar para o deserto pôde, de certa forma, ser sentido por muitas pessoas submetidas à quarentena para se proteger do coronavírus.

Alguns cronistas que passaram pela experiência de permanecer por algum tempo no deserto concluíram que visitantes destes lugares costumam descobrir em si mesmos uma calma primordial, que talvez seja o mesmo que a paz de Deus. Na experiência, parece haver um vislumbre de eternidade ao se defrontar com a paisagem desértica.

Parece ser a “geografia viva” sobre a qual escreveu o geógrafo francês Eric Dardel: a experiência pessoal que libera a realização da existência, na qual a terra onde se põe o pé pode se transformar numa possibilidade real do destino transitório do caminhante.

 

O autor é professor sênior da Unioeste

tarcisiovanderlinde@gmail.com

 

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