Fale com a gente

Urbano Mertz

Casas de madeira

Publicado

em

Há alguns anos tive a visita de um colega colombiano, que se espantou com a quantia de casas feitas com madeira em nossa cidade. Isto chamou-me a atenção de que casas de madeira não são comuns em todos os lugares, mas aqui são parte de uma tradição de moradia. Moradias de madeira construídas no tempo da colonização, quando havia abundância de toras de árvores centenárias e que ofereciam madeiras de lei de alta qualidade para a construção de casas.

Não eram como as casas americanas, com as tábuas compridas pregadas na horizontal e sobrepostas. Aqui as casas de madeira são pregadas na vertical, encaixadas umas nas outras ou ladeadas com as frestas cobertas por matajuntas. Exceção é o prédio que abrigou a sede municipal por quase 20 anos. Este prédio foi obra da Colonizadora MARIPÁ e sua sede administrativa na década de 50. Tombado como prédio histórico em 1985 e “destombado” em 2021, esta construção tem as tábuas pregadas horizontalmente, tal como as casas americanas.

Nas primeiras décadas da colonização, casas de madeira eram muito baratas para construir, pois a matéria-prima era abundante. Os mestres construtores eram disputados e faziam casas com tesouras perfeitamente ajustadas, com abas maiores para reduzir o molhamento das paredes, pois umidade e calor são fatais à conservação das madeiras.
As tábuas vinham das serrarias prontas para a construção. O construtor de casas que se prezava sabia identificar as diferentes madeiras.

Pelo cheiro, pela cor ou pela textura da madeira conseguia identificar as árvores originárias, se era uma canafístula, uma guajuvira, uma peroba, um cedro, um ipê, uma canjarana, uma cabreuva, um marfim, um louro ou um pau-ferro, estas que eram as espécies mais comuns da nossa floresta nativa.

As matas nativas ainda continham inúmeras espécies de alto valor comercial, mesmo após décadas de exploração e tráfico de madeira feito pelas companhias inglesas no início do século XX. Quando foi dado início ao processo de modernização da agricultura, ao final da década de 60 do século passado, este trouxe consigo a motosserra e o trator-esteira para a destoca. As toras maiores eram levadas às serrarias, vendidas, doadas ou queimadas. Leiras com amontoados de galhos, troncos, tocos e raízes queimavam por semanas, iluminando as noites, até virarem cinzas. E este seria o triste fim de árvores centenárias que compunham uma das mais densas e ricas florestas tropicais do mundo.

Uma serraria localizada num salto do Rio Guaçu, em Toledo, aproveitou a oportunidade para adquirir a abundância de toras nas propriedades e que atrapalhavam o plantio mecanizado da soja e do trigo. No início da década de 70, a empresa serrou tanta madeira que a serragem resultante encheu o leito do rio por vários quilômetros, o que indica que o projeto de modernização da agricultura também passou ao largo de preocupações ambientais.

As pequenas serrarias – algumas subsistem até hoje – serravam toras para a produção de palanques, postes, tábuas, ripas e madeira quadrada. Estas madeiras destinavam-se à construção de casas, chiqueiros, galpões e tudo mais que merecia ser protegido das chuvas numa propriedade rural. Hoje, a maioria destas construções está virando madeira de demolição, destinada a outros tipos de construções, à fabricação de móveis rústicos e para artesanato.

Nos últimos anos a imprensa tem registrado casas de madeira sendo deslocadas em caminhões de seu local de origem para novos endereços. Sendo de baixo custo e de fácil instalação, estas casas acabam sendo um novo lar para famílias ou destinadas a sítios de lazer. O transporte da casa intacta – sem o telhado – mantém a qualidade de fixação das tábuas e evita perda de materiais e de tempo que ocorreria no desmonte e na remontagem da casa.

Ao final da década de 90, um construtor da cidade, muito hábil e mestre neste tipo de construção, talvez tenha construído a última casa nova em madeira na cidade, e que está localizada próximo ao Clube Concórdia. A parte oeste da “cidade antiga” é a região que ainda possui o maior número de casas de madeira, o que dá a esta região um ar interiorano, um resquício daquilo que um pastor luterano escreveu no início da década de 70: Marechal Rondon é uma vila de colonos que tomou fermento e se tornou uma cidade.

Mas, aos poucos, as casas de madeira vão desaparecendo do cenário urbano. Com as novas gerações assumindo as heranças, elas acabam sendo substituídas por modernas casas de alvenaria, mas que nem sempre têm o conforto térmico de casas de madeira com parede duplas, um pé direito bem elevado e um assoalho de pinho encaixado, que não deixa nada a dever a um moderno piso de laminado vinílico.

O prédio de madeira da “prefeitura velha”, que foi “destombado” para liberar uma intervenção na sua estrutura, poderia muito bem ser restaurado e ali se reservar um espaço de memória à generosa floresta nativa e as suas árvores. Ali se poderiam expor amostras dos diferentes tipos de madeira e as suas características e propriedades, ilustrar o processo de produção das tábuas e a arte da construção das casas de madeira, e, enfim, mostrar como era esta floresta nativa e como ela foi extinta.

Assim, as novas gerações, tal como meu colega colombiano, poderão saber que existiam casas de madeira, construídas com material que a floresta e as suas árvores desenvolveram durante centenas de anos, e que foi generosamente deixada para os colonizadores. Estes somente queriam o solo para plantar, e as árvores vinham como prêmio para construção das suas casas.

Por Urbano Mertz. Ele é engenheiro agrônomo, vice-presidente do Conselho de Desenvolvimento Agropecuário e vice-presidente do Conselho do Meio Ambiente, ambos de Marechal Cândido Rondon

urbanomertz2019@gmail.com

Copyright © 2017 O Presente